A senadora paraguaia Lizarella Valiente expressou preocupação no mês passado com jornalistas e veículos do país que recebem recursos do bilionário e megadoador George Soros.
Durante uma audiência no Senado, ela projetou imagens em uma tela, destacando a jornalista veterana Mabel Rehnfeldt e seu perfil no site do International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ), organização apoiada por Soros.
"Nós sabemos muito bem a qual ideologia Soros pertence", disse Valiente, membro do Partido Colorado, agremiação conservadora. "Ele financia grandes ONGs no mundo todo, pró-aborto, pró-LGBT, pró-isso, pró-aquilo. Nós queremos que os cidadãos saibam disso."
Valiente estava defendendo um projeto de lei aprovado pelo Senado e enviado para a Câmara dos Deputados que tem objetivo de "estabelecer o controle, transparência e responsabilização de organizações sem fins lucrativos" no Paraguai.
Apoiadores do projeto de lei dizem que ele busca regular organizações sem fins lucrativos que recebem recursos públicos e privados de origem nacional ou internacional. Essas organizações terão que fazer parte de um cadastro nacional único, fornecer detalhes das atividades realizadas e produzir relatórios detalhados sobre o uso dos recursos financeiros. Há penalidades para quem não cumprir com as exigências.
No entanto, observadores dizem que o controle excessivo de organizações – incluindo um aumento no ônus administrativo – tem o objetivo de colocar um fim ao trabalho da sociedade civil, incluindo o da mídia e de jornalistas.
"Eu fiquei indignada, me senti violada", disse à LatAm Journalism Review (LJR) Rehnfeldt após a audiência no Senado. "Eles me trataram como uma criminosa enquanto perdoam políticos que estão de fato envolvidos em acusações graves. Algo está muito errado no Paraguai. E eu suspeito que eles vão partir com tudo pra cima da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão."
Preocupações com a liberdade de expressão
Várias organizações se pronunciaram a respeito dos efeitos negativos que o projeto de lei pode ter na liberdade de expressão no Paraguai.
Relatores especiais da ONU para a liberdade de reunião pacífica e defensores de direitos humanos enviaram uma carta ao presidente Santiago Peña dizendo que a lei tira a independência de ONGs e permite punições econômicas severas que podem tornar insustentável o trabalho sem fins lucrativos.
Hugo Valiente, coordenador legal da seção paraguaia da Anistia Internacional, concorda que o jornalismo como profissão pode ser um alvo do projeto de lei.
"Este projeto de lei traz um cenário de risco muito alto devido à margem vasta de arbitrariedade que ele permite", disse à LJR.
Ele argumenta que as restrições estabelecidas pelo projeto de lei são inconstitucionais e que a linguagem ambígua cria obstáculos para uma organização receber status legal e inclusive estabelece formas de a organização perder essa condição caso já a tenha.
O controle das finanças talvez seja um dos fatores mais preocupantes porque "coloca a independência da sociedade civil sob risco total", diz Valiente. Tanto veículos quanto jornalistas independentes que recebem uma porção significativa de seus recursos por meio de subsídios ou participando de projetos internacionais apoiados por organizações internacionais veem a lei como um obstáculo.
Ela afetaria jornalistas como Rehnfeldt que, além de trabalhar no ABC Color, às vezes colabora em projetos internacionais com organizações como o ICIJ ou a Connectas, e com veículos independentes como El Surti e El Otro País, com sede em Atyrá, cidade a cerca de 60 quilômetros da capital Assunção.
De acordo com Andrés Colmán Gutiérrez, cofundador e diretor editorial do El Otro País, o projeto de lei impactaria jornalistas, veículos digitais independentes, bem como projetos de desenvolvimento social voltado para comunidades rurais e indígenas, e setores da sociedade civil em geral.
"Este é o perigo que o projeto de lei apresenta", diz Colmán.
"Os jornalistas vão passar por uma camada extra de inspeção que nem mesmo os políticos que permitem a infiltração do tráfico de drogas passam", diz Rehnfeldt, acrescentando que o projeto de lei tiraria de jornalistas e veículos inclusive a possibilidade de receber treinamento, formação e ferramentas para o seu trabalho.
"Eu acho que a liberdade de expressão em geral e a liberdade de imprensa em particular estão em risco", diz.
Outro aspecto preocupante do projeto de lei está relacionado à informação que as organizações serão obrigadas a fornecer ao estado, o que, de acordo com Valiente, é "desproporcional". Ele observa que o Paraguai já tem leis em vigor exigindo que todos os tipos de organização (inclusive as sem fins lucrativos) enviem informações para combater a lavagem de dinheiro. Mas a lei obrigaria o envio de informações que vão além de questões fiscais e são consideradas sensíveis.
Há preocupações também com multas de até US$ 370.000 para organizações sem fins lucrativos, embora o projeto de lei não defina para quais tipos de crimes, deixando isso a critério do governo.
Movimento internacional contra direitos
De acordo com Alejandro Valdez, cofundador do El Surti, o projeto de lei é parte de um esforço político mais amplo liderado pelo Partido Colorado, de orientação conservadora, e cujos membros controlam tanto o Congresso quanto a presidência.
O ex-presidente Horacio Cartes, atual presidente do Partido Colorado, vem sendo investigado por jornalistas paraguaios e foi apontado pelo Departamento de Estado dos EUA por estar envolvido em "corrupção significativa" em 2022.
Valdez explica que, no Paraguai, um país fortemente católico e com uma comunidade evangélica crescente, há anos estabeleceu-se uma narrativa segundo a qual há conspirações globais, como a Agenda 2030 da ONU, que estariam voltadas para o controle dos costumes e da vida nacional. Isso seria supostamente possível por meio do financiamento de ativistas e jornalistas. Essa visão enxerga a defesa de direitos como uma ameaça aos "valores tradicionais".
Alguns senadores paraguaios, como Gustavo Leite, um dos apoiadores do projeto de lei, foram palestrantes em um congresso realizado pelo presidente húngaro ultraconservador Viktor Orbán.
A aprovação de leis desse tipo e a retórica cada vez mais nacionalista se aceleraram juntamente com o aumento de sanções administrativas e financeiras dos EUA contra o ex-presidente Cartes. Inclusive, no dia 8 de agosto, o Paraguai solicitou que os EUA agilizassem a saída de seu embaixador.
"Eles estão transformando um problema de uma empresa privada em uma questão de interesse nacional, como se estivesse afetando o Paraguai enquanto um país", diz Jazmín Acuña, diretora editorial do El Surti.
"Eu acho que a melhor demonstração de solidariedade hoje seria focar a atenção nessa pequena parte da América do Sul", acrescenta Acuña. "Demonstrações de solidariedade com o jornalismo também seriam muito, muito bem-vindas porque atualmente o jornalismo é um dos poucos espaços que permanecem independentes do poder."
Para Valdez, as ameaças à mídia são sentidas na região, como já ocorreu na Nicarágua ou na Venezuela.
"Este é o capítulo do Paraguai, mas é o capítulo de uma história maior que acontece em paralelo e, em alguns casos, como vemos na Hungria, talvez de uma forma coordenada", diz.
A LJR pediu declarações do senador Leite, mas não recebeu uma resposta no prazo.
O projeto de lei tramita agora na Câmara dos Deputados. Devido à maioria avassaladora do Partido Colorado, é provável que o projeto seja sancionado pelo presidente neste ano. Embora seja provável que a Justiça se alinhe ao partido atualmente no poder, organizações independentes dizem que estão preparando ações judiciais para questionar a constitucionalidade da lei.
Este artigo foi originalmente publicado pela LatAm Journalism Review e republicado na IJNet sob uma licença Creative Commons.
Imagem por David Peterson via Pixabay.