“Pega fogo, né? O índio taca fogo, o caboclo, tem a geração espontânea”. Essa frase foi proferida na semana passada pelo presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, a apoiadores como forma de justificar os incêndios que estão acontecendo em dois dos principais biomas do país, o Pantanal e a floresta amazônica. De acordo com um relatório do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o Pantanal já ultrapassou 15 mil focos de incêndio neste ano e, nos primeiros 14 dias deste mês, a Amazônia já teve mais queimadas que em todo o mês de setembro de 2019.
Além do óbvio problema ambiental, chama atenção a violência a que as populações indígenas estão expostas ― em meio a frases depreciativas ditas por integrantes do governo, o avanço do fogo ou, talvez o mais perigoso e preocupante, por tudo que motiva as queimadas. Esse cenário que acende um alerta: de que forma dar mais visibilidade a esses povos e às questões que enfrentam?
O tema foi discutido no painel “Terra indígena no centro das investigações" ―com Ana Aranha do Repórter Brasil, Letícia Leite do Instituto Socioambiental (ISA) e podcast “Copiô, parente”, e Fábio Pontes, freelencer no Acre― durante o 15⁰ Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), realizado no último final de semana.
“Fazemos um podcast para povos indígenas, mas a gente consegue produzir conteúdo junto com os povos indígenas”, diz Leite. Para a jornalista, é fundamental abrir espaço nos veículos de imprensa para profissionais indígenas. “Desenvolver parcerias mais colaborativas seguramente vai nos levar para a modificação que o jornalismo precisa passar”, avalia.
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Pontes concorda com a colega. Ambos destacaram a importância de dar protagonismo aos representantes indígenas e às entidades que os representam e que são reconhecidas por eles. “As melhores informações estão com os indígenas, os protagonistas. As informações repassadas pelas lideranças que estão na ponta, vivendo os problemas e as ameaças em seus territórios, são as mais preciosas para a produção de boas histórias”, destaca.
“Isso é algo que parece óbvio mas não é. É um erro muito comum os jornalistas apenas ouvirem os indígenas como personagens de uma história que vai ser investigada com outras fontes”, alerta Aranha. “A pauta vai ser mais relevante se desde o começo você puder ouvir os indígenas. Antes o distanciamento era uma desculpa, mas hoje não mais.”
Pontes destaca que para além de ter fontes nas terras indígenas, é relevante ir à campo. Também sugere que a academia seja sempre consultada. “Aquilo que aprendemos sobre o valor de se ter boas fontes nunca se mostrou tão pertinente”, diz ao destacar a importância de se observar questões práticas da cobertura do tema que vão desde os procedimentos padrões exigidos para se acessar as localidades até a construção de uma relação de confiança empática com as fontes.
Apagão de dados
A pandemia da COVID-19 evidenciou algo que já vinha sido sentido por muitos profissionais da imprensa e pesquisadores brasileiros: o acesso a dados está sendo dificultado pelo governo federal. “Se a situação está ruim pros brasileiros, para o país todo, a gente pode ter certeza que para os povos indígenas está necessariamente pior”, avalia Leite ao destacar a maior dificuldade de realizar investigações jornalísticas nessas localidades.
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Se evidenciar as pautas indígenas está difícil para os profissionais da imprensa, o que falar do acesso desses povos à informação? Como a maioria das terras ficam em regiões bastante isoladas e quase sem comunicação, o que veículos e jornalistas precisam fazer é inovar, afirma Leite.
“No ISA nós nos debruçamos para entender as melhores formas (de alcançar essas pessoas). Nessas áreas como a internet é muito ruim, o WhatsApp é o aplicativo que funciona melhor”, diz ela. Além de enviar os episódios do “Copiô, parente” em mp3 para a lista de distribuição do instituto, a equipe de comunicação repassa diariamente dados atualizados do que tem ocorrido de mais importante no país e que afeta essas comunidades.
No radar
Para Leite, as polêmicas em torno da construção da usina hidrelétrica de Belo Monte e a própria postura do atual governo colocaram a pauta indígena no debate do país.
“Belo Monte se tornou esse símbolo de inadimplência e de desrespeito com as populações indígenas”, recorda ao citar a falta de consulta aos povos indígenas, etapa fundamental para o licenciamento ambiental, e o envio da Força Nacional para garantir a continuidade dos trabalhos, “de uma concessionária privada”.
Por meio de dados obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI), o ISA elaborou, em 2015, o Dossiê Belo Monte, o qual demonstra que a vida das populações indígenas sofreu impactos negativos desde o início das operações envolvendo a usina. O envio de bens de consumo e de alimentos que desconsideravam os costumes e as tradições dos diferentes povos, fez saltar os índices de desnutrição de menores de cinco anos. Em Altamira (PA), a mortalidade infantil de indígenas à época chegou a ser quatro vezes superior à média nacional.
“Exemplo desse descompasso é o fato de a Norte Energia S.A., empresa concessionária capaz de erguer a terceira maior hidrelétrica do mundo, não ter conseguido, em três anos, construir um hospital público em Altamira a tempo de atender à demanda geral no pico das obras”, diz o documento. Para além disso, o dossiê mostra que a regularização fundiária não foi feita corretamente e que a grilagem e o roubo de terras e de madeira aumentou no período.
Soma-se a esse cenário debilitado os discursos governamentais que volta e meia são proferidos contra as populações indígenas. Manifestações que atestam o desconhecimento sobre esses povos e evidenciam o desrespeito que o governo federal possui por eles. No final de 2018, por exemplo, ao falar sobre a capacidade que seu governo teria de reduzir o desmatamento e a emissão de gases de efeito estufa, Bolsonaro afirmou que manter índios em reservas demarcadas seria tratá-los como animais em zoológicos.
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Por trás disso, avalia a representante do ISA, há o incentivo de ações ilegais que visam beneficiar grupos específicos. “O garimpo nas terras indígenas hoje tem tentáculos de crime organizado. Assim como o trafico de armas, de drogas, de minérios. É um empreendimento criminoso, ilegal, e extremamente caro”, explica. Ela também lembra que justamente por serem áreas de difícil acesso o mesmo avião que transporta mantimentos, profissionais de saúde e auxilia nos resgates quando necessários, é o que atua a serviço dos garimpeiros. “Essas populações ficam entre a cruz e a espada”, afirma Leite.
Para falar sobre esses conflitos, é preciso que os profissionais da imprensa tenham muito cuidado no trato das informações, até porque muitas matérias, por melhores que sejam, podem colocar os indígenas em risco ainda maior.
“Dá pra fazer jornalismo investigativo em terras indígenas da frente do computador e com boas fontes. (...). Quando falamos de investigação estamos falando de crime organizado e não de pequenos delitos. São tentáculos que desafiam as estruturas de poder”, finaliza Leite.
Se você tem interesse em saber mais sobre cobertura de questões indígenas e quer ver todas as dicas de como começar, vale dar uma olhada no painel “Terra indígena no centro das investigações”, que fez parte da programação do 15⁰ Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo da Abraji. O conteúdo do evento estará disponível até o início de outubro.
Kalinka Iaquinto é repórter e coordenadora de comunicação da agência independente de reportagens Eder Content. Twitter: @kikaiaquinto.
Imagem: print da tela do painel "Terra indígena no centro das investigações" do 15⁰ Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo da Abraji.