Tudo começou com um grupo no Whatsapp. O mesmo lugar demonizado por abrigar grupos de desinformação da extrema direita foi o ponto de partida há seis anos para a jornalista Marcelle Chagas reunir colegas em torno da diversidade nas redações e colaboração entre jornalistas negros. “Eu passei por redações, rádio Roquette Pinto, fui apresentadora, diretora executiva. Ficava olhando em volta e dizendo gente, não tem ninguém parecida comigo”.
Lugar de desabafo e solidariedade
Em pouco tempo o grupo contava com 200 pessoas negras. “A gente via muito pessoas buscando recolocação com currículo ótimo, com experiência. Perguntas sobre o quanto cobrar e sobre a falta de investimento no negócio jornalístico. Colegas que não tinham dinheiro para manutenção de sites, colegas passando necessidade e denúncias de racismo”, explica Chagas.
O grupo era um lugar de desabafo seguro para troca de experiências e apoio. “Eu mesma já fui vítima de racismo em plena Sapucaí, no carnaval. Imagina, um lugar supostamente democrático”. Ela conta ser a única jornalista em que os seguranças ficaram todos os dias de desfile cobrando o crachá e questionando a presença dela ali. “No último dia, o cara me barrou de novo. E a lágrima caiu. Eu entrei chorando, tive que ir para o banheiro. É o tipo de situação que você sabe o nome e ser resiliente não é suficiente”, conta Chagas.
Do Whatsapp para ONG
Mas o espaço no WhatsApp ficou pequeno para os projetos que fervilhavam na cabeça de Marcelle Chagas e assim o grupo passou a atuar como uma organização não-governamental: a Rede de Jornalistas Pretos pela Diversidade na Comunicação, uma comunidade com conexões e intercâmbios com países como França, Moçambique e Libéria. “A gente organizou investimento em educação, como por exemplo, preparação de currículo, bolsa de telejornalismo, e temos nossa mídia, espaço para mostrar o trabalho de jornalistas negros”.
Manual de Boas Práticas Antirracistas
Entre os marcos da Rede, o mais recente foi o lançamento do Manual de Boas Práticas Antirracistas, gratuito e que pode ser adquirido online. “O manual faz parte do nosso olhar de educação, quando começamos a pensar que alguns termos estavam sendo modificados da sua origem no contexto digital”, explica Chagas. “A gente fala sobre condutas, palavras e ferramentas. Inclusive, é um material para levar a reflexão e em constante discussão, que provavelmente vai ganhar outras edições. Ele foi criado para ser rápido, de fácil leitura”.
Segundo Chagas, o manual vem num momento importante de discussão do contexto digital que reproduz tantas desigualdades. “Vimos recentemente organizações abrindo mão das questões de diversidade, as big techs analisando o que é preciso filtrar, a gente vê um período muito conturbado. Então a gente lança esse projeto, que já vem de uma construção, num momento importante”.
Num Brasil com baixo número de professores negros nas universidades, o testemunho de que professores universitários estão usando o manual criado pela Rede de Jornalistas Pretos tem deixado a equipe orgulhosa. “É importante os professores brancos fazerem parte deste trabalho”, pontua Marcelle. Os organizadores destacam que embora seja uma visão antirracista, o material não é só para pessoas negras, mas para ser consumido de forma geral.
Comunihub – um LinkedIn especial
Além do Manual, a rede pensou como co-criar materiais e co-criar ações e por isso montou recentemente a plataforma Comunihub – que funciona num ambiente em que o jornalista negro consegue trabalhar de forma mais objetiva. “A gente consegue refinar a busca por jornalistas próximos e de perfis de entrevistados. A pessoa que participa consegue ter um perfil profissional para se cadastrar e enviar para empresas, além de se conectar com outros jornalistas negros para conseguir mostrar seu trabalho. Uma espécie de Linkedin próprio”, explica Chagas.
Fortalecimento de narrativas negras
Além disso, Chagas foi a responsável pela criação do GriôTech, um projeto digital desenvolvido pelo Instituto Peregum e colaboração da Mozilla Foundation, que busca potencializar narrativas negras e fortalecer a presença de tecnologias centradas em justiça racial. A intenção é promover a equidade digital, a soberania tecnológica e a justiça racial no ecossistema digital.
A questão da visibilidade é uma constante preocupação: através de ações como premiação para trabalhos de jornalistas negros e de valorização dos profissionais. O último pilar que a Rede fortaleceu foi o de advogacy, para políticas públicas junto ao governo federal.
Ainda no próximo mês será lançada a iniciativa REPCONE, dentro do ComuniHub. Apoiado pelo Fundo ELAS+ e também em parceria com a Mozilla Foundation, o projeto vai promover ações de cibersegurança, formação e resposta rápida a ataques digitais voltados a comunicadoras negras e periféricas em toda a América Latina.
O próximo projeto já está na mesa de discussão: desenvolver um guia de saúde mental. "Ainda temos muitos planos", garante Chagas.
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