Apesar de ser um assunto mais voltado à sociologia e à criminologia, o tema desaparecimento forçado ganhou força também enquanto produção audiovisual recentemente no Brasil. Prova disso, é o sucesso de "Ainda Estou Aqui", do cineasta Walter Salles Jr., baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva. O vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro retrata a história de Eunice Paiva, que tenta desvendar o paradeiro do marido, o engenheiro Rubens Paiva, em plena ditadura militar. Numa busca rápida pela internet, por exemplo, é possível identificar, dentre os mais variados estilos e idiomas, 45 filmes sobre pessoas desaparecidas.
Assunto de podcast
No mundo dos podcasts, a novidade é o "Luto Não é Para Todos" do cientista social Augusto Perillo, que estuda o tema há 3 anos e no qual resultou em sua dissertação de mestrado pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Dividido em 4 episódios, o programa de áudio elabora diversos aspectos sobre a questão dos desaparecimentos, desde suas dimensões jurídicas e penais até as subjetividades que atravessam defensores de Direitos Humanos ao lidar com o luto decorrido dessas mortes violentas e desaparecimentos.
Entre os personagens escolhidos para o podcast, há desde uma ex-guerrilheira que lutou nos anos de chumbo (Victoria Gabrois, uma das fundadoras do grupo Tortura Nunca Mais), passando pelo rapper @Einstein NRC, de Nova Iguaçu, cujo irmão desapareceu por causa de uma emboscada protagonizada por milicianos.
Medo de denúncias
"Muitas famílias são atormentadas por situações limite devido aos casos de desaparecimentos forçados. São, muitas vezes, receosas em fazer denúncias em função dessa pedagogia do terror e da violência. Estamos falando de famílias empobrecidas, periféricas, pretas e pardas", diz Adriano de Araujo, coordenador executivo do movimento Fórum Grita Baixada, também entrevistado em um dos episódios do podcast.
"O Luto Não é Para Todos" teve um desempenho relevante dentro da categoria "História" na plataforma digital de áudios Spotify, chegando a ficar entre os cinco mais ouvidos até o fechamento desse texto. Mas quais seriam as razões desse sucesso? Novamente, o filme "Ainda Estou Aqui" pode indicar um interesse maior do público por narrativas de memória e justiça.
"A ditadura não está no passado, ou seja, há uma incidência até os dias atuais no nosso cotidiano quando assistimos torturadores soltos, recebendo dinheiro do Estado, e as vítimas ainda brigando na justiça por direitos. O Brasil é uma máquina de moer gente, desde a sua fundação, e a luta por memória e justiça, infelizmente, sempre estará em voga", diz Perillo.
O criador do podcast afirma também que o desaparecimento é algo muito inserido no cotidiano das pessoas. Segundo o cientista social, nas periferias, "todo mundo conhece alguém que desapareceu, independente da forma de como isso se deu".
"Discutir desaparecimento forçado é, também, discutir desaparecimento de maneira geral e buscar entender os porquês dos desaparecimentos", diz o responsável. Com o podcast, ele recebeu mensagens de pessoas dizendo que só entenderam o que aconteceu (o desaparecimento de pessoas próximas) depois de ouvir os episódios. "Isso é muito gratificante, mas também muito triste. Ou seja, some muita gente nesse país e possuímos pouquíssimas políticas efetivas. Se fizer o recorte de raça e classe, aí é que as políticas e atuação do Estado desaparecem de vez", afirma o pesquisador.
Grupos armados, narcotráfico e milícias
Perillo faz parte do grupo de pesquisa Observatório Fluminense, da UFRRJ, que estuda os desaparecimentos forçados pela perspectiva de grupos criminais armados como agentes de segurança do Estado, narcotraficantes e milicianos. Embora seja um crime reconhecido internacionalmente, não é tipificado como tal no país, dificultando a contabilização dessa prática. A ONU avaliou o cenário brasileiro e recomendou a criação de uma legislação específica com vistas a se criar políticas públicas de prevenção e combate a esse fenômeno. Apesar de não haver uma tipificação criminal, o Brasil contabiliza um número significativo de pessoas desaparecidas.
Para exemplificar, somente entre 2016 e 2020, a Baixada Fluminense, conjunto com 13 cidades da região metropolitana do Rio de Janeiro, teve ao menos 361 casos de desaparecimentos forçados e o município do Rio somou 417. Os dados são de pesquisa feita pelo movimento social Fórum Grita Baixada (FGB), em parceria com a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) que também acabou gerando um livro: Desaparecimento Forçado: Vidas Interrompidas na Baixada Fluminense
Narrativas incovenientes e dados "secretos"
Fabio Alves Araujo é doutor em sociologia e pesquisador da Fiocruz, além de autor do livro “Das técnicas de fazer desaparecer corpos: desaparecimentos, violência, sofrimento e política”. Ali estão expostas não apenas as manifestações de pesar de mães, familiares e movimentos que denunciam tal tática. Mas, também, as resistências que poder legislativo, sistema judiciário e o próprio Estado oferecem para dar os passos iniciais nos processos de investigação, construir uma legislação mais rigorosa para a responsabilização criminal dos envolvidos e desenvolver métodos mais eficazes na localização dos corpos.
O livro possui muitas ilustrações de matérias e reportagens sobre desaparecimentos forçados, o que desperta uma curiosidade sobre que percepções o pesquisador constrói ao analisar como determinados representantes do jornalismo empresarial tratam essa questão em suas narrativas.
Na opinião de Araujo, o jornalismo proposto pela mídia hegemônica contribui para desumanizar as vítimas do desaparecimento forçado e desinformar sobre as dinâmicas e contextos que provocam esses desaparecimentos. Sua principal crítica reside no fato de que determinadas reportagens jornalísticas reproduzem a narrativa oficial da polícia sobre o crime e os criminosos.
"Pouco se fala criticamente sobre as políticas de segurança e seus efeitos diferenciados que produzem “proteção” para uns, e mortes de desaparecimentos para outros, dependendo do status político que cada pessoa, do valor atribuído ou não, à vida de cada pessoa, a depender de uma combinação de variáveis que envolve trabalho, território, faixa etária, sexualidade, suspeição, etc", enfatiza o pesquisador.
Outra constatação observada por Araújo, que atinge tanto jornalistas quanto pesquisadores que se debruçam sobre as questões relacionadas à segurança pública, é a dificuldade de acessar informações específicas produzidas pelo Estado. Em muitas ocasiões, os meios de comunicação independentes ou populares, que não disponham de respaldo jurídico para ter acesso a dados ou documentos através da Lei de Acesso à Informação, ficam restritos ao caráter oficialesco de números como os produzidos por órgãos como o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP-RJ) resultando em jornalismo mais superficial.
"Essa dificuldade na produção dos dados, diz respeito a várias questões como as tensões envolvidas entre os vários órgãos que participam da gestão do problema das pessoas desaparecidas, a precariedade dos serviços públicos que lidam com essa questão e também sobre os problemas de silenciamento que o exercício do terror por grupos armados implica", diz Araujo.
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