A verificação pode ser uma questão de vida ou morte. Mas quando se fala de uma população vulnerável como a das pessoas migrantes, em meio ao seu trânsito constante elas recebem conteúdos, muitas vezes falsos ou enganosos, que põem em risco seu patrimônio ou a vida de seus familiares. É aqui que o jornalismo de soluções se mostra relevante, a ciência de dados oferece benefícios e o processo de verificação de fatos obtém resultados importantes.
Este é o caso da reportagem "A armadilha da desinformação: o negócio de enganar pessoas migrantes", apoiado pelo programa Disarming Disinformation do Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ na sigla em inglês), que revelou como os migrantes são enganados com trâmites migratórios e ofertas de trabalho através de grupos do Facebook e WhatsApp, resultando em fraudes ou desinformação.
Durante maio e junho de 2023, jornalistas do Verificado e Conexión Migrante do México, e AP, Data-Pop Alliance e PolitiFact dos Estados Unidos fizeram uma investigação ampla em Tijuana, Ciudad Juárez, Cidade do México e Flórida para mostrar como as pessoas migrantes são presas fáceis da desinformação que põe sua vida em risco.
Daniela Mendoza, diretora geral do Verificado e coordenadora editorial da investigação, compartilhou em entrevista para a IJNet como o projeto foi desenvolvido e as lições aprendidas, bem como novas linhas de trabalho para que mais jornalistas façam jornalismo migrante e verificação de fatos.
Jornalismo de soluções e verificação
Fazer jornalismo implica sair da "bolha" em que muitos jornalistas se encontram para conhecer os riscos e vulnerabilidades enfrentados pelas pessoas. Interessado em fazer jornalismo sobre migração e sabendo que as redes sociais se converteram em um impulso para o conteúdo falso, um grupo de jornalistas decidiu investigar o tema.
Um dos primeiros passos foi determinar o objetivo da investigação e para isso eles se aproximaram diretamente da população migrante por meio de um dos veículos participantes: Conexión Migrante, que faz jornalismo focado em migrantes no México.
"Nada melhor do que as pessoas migrantes para nos dizerem onde está a desinformação, o que foi vendido e prometido a elas e, a partir disso, começar a trabalhar. Queríamos trabalhar em um tema que fosse transcendente e também fazer isso a partir das pessoas que o vivem", comenta Daniela Mendoza.
Com a participação de 11 jornalistas e pesquisadores, foram feitas entrevistas com migrantes, autoridades binacionais e organizações da sociedade civil, além da análise de grupos, ofertas e anúncios em plataformas digitais.
Eles foram a albergues que recebem migrantes em cidades mexicanas próximas à fronteira com os Estados Unidos para compilar informações e, a partir daí, determinar quais eram os temas mais sensíveis em relação à população migrante.
Equipe multidisciplinar em pesquisa e análise
Uma das vantagens do projeto, diz Mendonza, foi reunir profissionais de diferentes áreas. De um lado, jornalistas dedicados à análise de dados através de mensagens e redes sociais e, por outro lado, verificadores de conteúdo que seguiram o rastro dos "modelos de negócio" que enganam migrantes com falsas promessas.
Dessa forma foi possível localizar falsos recrutadores, traficantes de pessoas, "assessores legais", influenciadores e até os que se autodenominam "coaches de migração", que vendem oportunidades para os migrantes ao oferecer conselhos legais, vistos de trabalho, asilo político ou formas de cruzar a fronteira entre o México e os Estados Unidos.
A equipe de jornalistas teve que fazer o rastreamento de conteúdo em redes sociais como TikTok e Facebook, enquanto o outro grupo de colaboradores fez o trabalho de campo para obter declarações de migrantes. Também contaram com especialistas em gravação de vídeo, edição, ilustração e gráficos, assim como um verificador de fatos, responsável pela verificação do material completo.
Ciência de dados aplicada ao jornalismo
A reportagem incluiu uma análise exploratória de mensagens em grupos públicos de WhatsApp. Para obter os resultados, foi utilizada a plataforma brasileira Palve, que usa ciência de dados. Com a ferramenta, eles rastrearam palavras-chave que permitiram localizar conteúdos enganosos e a origem dos mesmos.
Durante um mês, a equipe de trabalho criou e implementou uma pesquisa digital que foi respondida por 2010 migrantes, a qual revelou que mais de um quarto dos participantes tinham recebido mensagens falsas sobre trâmites migratórios e ofertas de trabalho. Quase dois terços confirmaram que tinham sido afetados por fraudes.
A investigação permitiu descobrir que as pessoas migrantes da América Latina financiam a desinformação durante seus trajetos até os Estados Unidos ao serem vítimas de fraudes que lhes custam milhares de dólares.
Lições da combinação entre verificação e jornalismo migrante
Como coordenadora editorial, Mendoza reuniu as lições aprendidas no projeto:
- Forme uma equipe de trabalho multidisciplinar; se não tiver essa oportunidade, aproveite as vantagens de cada pessoa da equipe;
- Saia do trabalho na redação. É preciso buscar as histórias de forma presencial e também digital
- Tenha pautas definidas sobre o plano de trabalho: quando e como vão ser as entregas, o que vai ser feito, qual vai ser o papel de cada integrante da equipe, uma vez que cada um é responsável por reunir informação e propor ângulos informativos;
- Envolva os colegas em cada parte do processo audiovisual. Isso permitirá desenvolver produtos centrados nas necessidades do público estudado.
Desinformação entre migrantes não para
A jornalista mexicana destaca a importância de dar continuidade ao assunto, em vez de se esquecer dele depois de publicado. No caso dela, a equipe conseguiu revelar modelos de negócio que partem da desinformação, mas a migração vai continuar, o que vai demandar mais conteúdo e atualizações, por isso a recomendação dela é seguir investigando quantas vezes for necessário.
Embora a reportagem foque na fronteira do México com os Estados Unidos, as possibilidades de amplificar o conteúdo são maiores, envolvendo a fronteira sul com a Guatemala, Honduras, Nicarágua, Venezuela ou El Salvador, países de onde saem os migrantes.
"É preciso seguir produzindo esse tipo de informação de forma recorrente e buscar todos os mecanismos com os quais as pessoas possam ser enganadas para evitar que a desinformação persista", concluiu.
Imagem cedida pelo projeto A armadilha da desinformação: o negócio de enganar pessoas migrantes