Venezuela: menos liberdades, mais jornalismo

por Nilsa Varela Vargas
Oct 30, 2018 em Jornalismo digital
Protestos na Venezuela

Em meio a um controle rigoroso do papel da imprensa, a mudança dramática nas linhas editoriais da mídia tradicional --que levou a demissões voluntárias-- e a censura promovida pelo governo nacional, muitos jornalistas na Venezuela optaram por criar suas próprias organizações de mídia.

Como evidência, existem 72 startups venezuelanas no diretório da SembraMedia. Quarenta e três por cento delas foram lançadas após 2014, um ano em que os protestos anti-governo aumentaram e causaram registros sem precedentes de repressão e outros atos antidemocráticos: mais de 3.300 manifestantes foram detidos, 973 foram feridos e 42 mortos.

Com a mídia tradicional convidada pela Comissão Nacional de Telecomunicações (Conatel) a suprimir as transmissões dos protestos, a fim de evitar um "efeito de imitação" entre os cidadãos, o jornalismo sofre com a autocensura constante, um ingrediente chave para entender o nascimento de nove startups de mídia em 2014, 16 em 2015 e seis em 2016.

O diretório inclui iniciativas de jornalismo investigativo, como RunRun.es, Efecto Cocuyo, El Estímulo, Crónica Uno e Armando Info; exemplos de jornalismo colaborativo, como El Pitazo, La Vida de Nos e Te Lo Cuento News; jornalismo hiperlocal como Tane Tanae e Diario El Vistazo; e outros focados em jornalismo especializado, como Vida Agro e Viva el Cacao.

"Os jornalistas venezuelanos decidiram dar um passo a frente e dizer 'isso tem que ser contado', para preservar os espaços de expressão e superar barreiras", diz Nela Balbi, diretora do Instituto Venezuelano de Imprensa e Sociedade.

Em agosto de 2017, a pressão sobre a mídia tradicional causou o fechamento de 46 estações de rádio e três canais internacionais, criando mais incerteza e instabilidade no jornalismo.

Esse número contrasta com o número de organizações digitais venezuelanas e jornalistas que, por sua vez, estão sendo reconhecidos com os prêmios de maior prestígio: dos Prêmios Pulitzer ao Prêmio Gabriel García Márquez de Jornalismo.

Inovação e flexibilidade para manter o jornalismo à tona

Os protestos no país coincidiram com o surgimento de novas mídias digitais, como a La Vida de Nos.

Lançada em janeiro de 2017, essa é a startup mais nova registrada no diretório da SembraMedia. A ideia original de contar histórias universais de formato longo adaptou-se às dinâmicas diárias de manifestações e repressões, dando visibilidade a famílias de prisioneiros políticos, sobreviventes de abusos de direitos humanos e mais.

"Como você pode virar as costas para tantas injustiças e acontecimentos dramáticos?" disse Albor Rodríguez, diretora e editora da La Vida de Nos (LVN). "Nós entramos nesta situação vertiginosa sem deixar de fazer o que queremos. Não cobrimos eventos, oferecemos um tipo diferente de reportagem."

O LVN ilustra como a flexibilidade tem sido a chave para enfrentar a adversidade. Hoje, o LVN não só recebe o patrocínio de empresas como Bigott, Banesco e organizações internacionais, mas também oferece treinamento, juntamente com El Pitazo, outro nativo digital.

A resistência das mídias digitais na Venezuela também é medida pelos esforços financeiros que faz para preservar sua capacidade operacional. Campanhas de crowdfunding, conteúdo patrocinado e publicidade online são cada vez mais frequentes.

Iniciativas off-line, como o Bus TV e o ressurgimento das notícias "cara a cara" da Crónica Uno, somam à lista de soluções que o jornalismo venezuelano criou para lidar com problemas de conectividade.

O objetivo é sempre o mesmo: contar o que está acontecendo.

Jornalismo da diáspora

Há mais de 2,5 milhões de venezuelanos que vivem fora do país, de acordo com o pesquisador Iván de la Vega, chefe do Laboratório de Migração Internacional. E também há jornalistas comprometidos com esses públicos satélites.

Em 10 de abril de 2017, os mais de 300 jornalistas que trabalharam na pesquisa do "Panama Papers" receberam o Prêmio Pulitzer para reportagem explicativa, incluindo a venezuelana Emilia Díaz-Struck  e 15 outros jornalistas que fizeram parte da equipe nacional coordenada pela Armando.info. Diaz-Struck, que atuou como uma das editoras da investigação do "Panama Papers", é professora de jornalismo na Universidade Central da Venezuela (UCV) e ex-repórter em residência no New England Center for Investigative Information da Boston University e Connectas.

A dispersão global dos profissionais da mídia venezuelana tem sido uma boa notícia para o jornalismo colaborativo. A cobertura do plebiscito de julho reuniu 40 jornalistas emigrantes venezuelanos em 20 países que voluntariamente reportaram sobre os detalhes de um referendo que levou 7,5 milhões de venezuelanos dentro e fora do país para as eleições.

"Foi um dia verdadeiramente histórico para o jornalismo digital; alcançamos dois milhões de pessoas nas redes sociais e recebemos mais de 10.000 visitas únicas no site", explicou José Rafael Mata, fundador e diretor criativo da Panas Digitales, um site construído por jornalistas para conectar venezuelanos no exterior e oferecer informações e conselhos sobre oportunidades de negócios, emprego, estudos, assistência jurídica, etc. O projeto, coordenado por Mata, fez parceria com RunRun.es, El Pitazo, Vivo Play, Crónica Uno e Diario Tal Cual.

Impacto premiado

Depois de uma queda em sua reputação, que resultou do aumento da polarização política após o golpe contra o presidente Hugo Chávez em 2002, o jornalismo na Venezuela ganhou um importante reconhecimento internacional.

Em 2017, El Estímulo ganhou o prêmio de cobertura de notícias da Associação Interamericana de Imprensa (SIP, em espanhol) pela série "Morir una, dos y tres veces de hambre". Armando.info e Connectas obtiveram menções honrosas da SIP por “Las últimas prisioneras de los nazis en América Latina”.

Em 2016, o especial "Sin Tratamiento", de María Laura Chang ​​​​do Efecto Cocuyo e "Masacre de Tumeremo", publicado pelo Correo del Caroní em aliança com RunRun.es e El Pitazo, foram finalistas do Prêmio Gabriel García Márquez de Jornalismo.

A série "Radiografía Misión Vivienda: testimonios, cifras y desafíos", publicada pela Contrapunto, conquistou o primeiro lugar na competição do Instituto Prensa y Sociedad Venezuela 2016. O segundo lugar foi para RunRun.es para um caso de corrupção envolvendo uma família poderosa. E o terceiro lugar reconheceu duas obras: uma investigação do Run.Run.es sobre vigilância ilegal e uma investigação sobre um grupo de jovens médicos militares que foram enviados para uma maternidade, publicado pela Armando.info.


Nilsa Varela Vargas é embaixadora da SembraMedia na Venezuela e fundadora do Diario El Vistazo. Siga-a no Twitter.

Este post foi publicado originalmente na SembraMedia e é reproduzido na IJNet com permissão. 

Imagem por Rayner Peña. R. para El Pitazo