A reportagem investigativa que desvendou irregularidades no mercado imobiliário do México

Apr 19, 2024 em Jornalismo investigativo
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Investigar empreendimentos imobiliários e também fundos fiduciários de infraestrutura criados para financiar construções — o que no México é chamado de fibra imobiliária — pode nos levar a personagens poderosos vinculados a atos de corrupção que permitem construir bens imóveis passando por cima dos direitos de povos e comunidades.

Este tipo de investigação jornalística de fôlego exige análise de dados, visualização e participação de uma equipe multidisciplinar. Foi o que conseguiu fazer o veículo mexicano N+Focus com a reportagem Cidade sem água. Um povoado contra o gigante do concreto, vencedora do Prêmio Ortega y Gasset 2023 na categoria  Melhor Cobertura Multimídia

Os autores da investigação, Jennifer González Posadas e Alejandro Melgoza Rocha, compartilharam com a IJNet a metodologia aplicada nesse trabalho, bem como as lições que consideram fundamentais para que mais jornalistas possam realizar reportagens que ouçam as vozes de populações afetadas pelos abusos de imobiliárias.

Plano de trabalho

Todo trabalho jornalístico demanda um plano e o desta investigação levou quase um ano. Os primeiros três meses foram de planejamento: construção de hipóteses, elaboração de uma linha do tempo e análise de documentos.

Nos cinco meses seguintes, o trabalho se dividiu entre gravações de entrevistas e filmagens no local, além de revisão de documentos obtidos via lei de transparência. O tempo restante foi usado para preparar a publicação multimídia na etapa de pós-produção, incluindo a verificação de dados.

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Captura de tela da reportagem multimídia "Cidade sem água. Um povoado contra o gigante do concreto"

 

Um total de 16 pessoas participaram do trabalho: editores, jornalistas, produtores de vídeo, pilotos de drones, equipes de análise de dados, designers multimídia e programadores.

Parecer de viabilidade, um documento fundamental

No México, não se pode construir sem um parecer de viabilidade, daí sua importância. O documento revela o nome da pessoa que vai construir e se o governo ou prefeitura têm capacidade de distribuir água e esgoto na região. Porém, diz González, a documentação não mostra a água disponível, apenas a infraestrutura.

Melgoza acrescenta que o parecer está relacionado com a Lei de Desenvolvimento Urbano de cada região, por isso pode variar de acordo com o estado. Em relação aos projetos imobiliários, ele indica o tipo de construção, volumes, andares, estacionamento e densidade.

Construção de bases de dados e mapeamento de resultados

Um trabalho essencial na investigação foi a análise entre o mapa de disponibilidade de água na Cidade do México e o mapa do Sistema de Águas para localizar as regiões com maior número de licenças para construção. Isso rendeu uma das descobertas mais importantes: a pouca disponibilidade de água onde havia sido concedido o maior número de licenças.

Além disso, Melgoza gerou um mapa de empreendimentos imobiliários com maior consumo de água a partir do registro de denúncias da Procuradoria Ambiental contra megaprojetos imobiliários. Ao cruzar a informação obtida na esfera administrativa e penal, obteve-se uma lista de 211 megaempreendimentos com irregularidades instalados na Cidade do México.

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Captura de tela da reportagem multimídia "Cidade sem água. Um povoado contra o gigante do concreto"

 

Os jornalistas também montaram uma linha do tempo no Excel com os dados obtidos em relatórios financeiros, processos gerados pelas denúncias e respostas a solicitações de informação. Eles incluíram um rastreamento de dados nas redes sociais para investigar as empresas, com o objetivo de comparar datas de etapas dos projetos

Opacidade na investigação de fundos de investimento imobiliário

Ainda que os fundos de investimento imobiliário estejam relacionados com o desenvolvimento urbano e a infraestrutura de uma cidade, o que envolve licenças e espaço público, no México há bastante opacidade em torno desses fundos, desde o acesso à informação até a busca de respostas diretas. 

Apesar dessas barreiras, González ressalta uma vantagem: eles estão na Bolsa de Valores do México, o que torna viável o acesso a informações sobre receitas, vendas e propriedades, e com isso pode-se conhecer seus interesses e perfis, detectar se eles se dedicam à administração ou compra de depósitos, praças comerciais ou parques industriais. 

Melgoza compartilhou um guia para seguir o rastro de empreendimentos imobiliários:

  1. Conhecer o esquema e os mapas dos grandes empreendimentos das cidades
  2. Entrar em contato com associações de vizinhos ou comitês que acompanharam o empreendimento até sua conclusão. Isso permite saber como a construção foi modificando a paisagem, o seu entorno e irregularidades, como denúncias
  3. Buscar todos os registros sobre irregularidades dos empreendimentos
  4. Gerar solicitações de acesso à informação sobre cada um dos empreendimentos à autoridade ambiental e órgãos de fiscalização
  5. Explorar relatórios anuais de investidores. Eles têm a obrigação de informar as irregularidades em que estão envolvidos. A partir daí começa-se a seguir um rastro, ainda que os fundos não informem todas as ações na Justiça e sejam registrados com diferentes razões sociais, o que também gera pistas, segundo González
  6. Denunciar a justiça administrativa, que costuma proteger grandes casos de investidores, sobretudo imobiliários.

Armadilhas imobiliárias, um bicho de mil cabeças

A experiência anterior de González e Melgoza na investigação de empreendimentos imobiliários permitiu identificar estratégias usadas pelas construtoras, as quais consistem em apresentar os projetos por etapas, o que obriga o jornalista a gerar diversas solicitações de acesso à informação e identificar cada uma das etapas do projeto, o que se assemelha a um "bicho de mil cabeças".

"Não tem como ser totalmente abrangente, do contrário nunca vamos terminar (...) A linha do tempo nos ajudou a não nos perdermos e a não seguir todas as cabeças do bicho", diz González.

Outra complexidade enfrentada ao investigar esse assunto é a mudança de razão social por parte dos empreendimentos, menciona Melgoza. "Muitas dessas razões sociais são criadas para não deixar rastros do tipo fiscal ou legal; se eles não são detectados, podemos pensar que se encontramos 105 denúncias, elas correspondem ao mesmo número de empresas, quando na verdade elas pertencem ao mesmo conglomerado."

Solicitações de informação

A investigação demandou 1.876 solicitações de informação porque envolveu a revisão de 16 sub-prefeituras na Cidade do México, onde foram solicitadas informações administrativas, penais, multas, licenças, autorizações, além da origem e antecedentes dos empreendimentos imobiliários.

Mas os jornalistas enfrentaram negativas, tendo como desculpa sigilos fiscais ou inexistência da informação. As negativas foram impugnadas. "Entregaram as informações a conta-gotas. Eu me atrevo a dizer que se entregaram informações, foi com 1% de eficácia, o resto não serviu, o que me parece omisso, já que a água é um interesse público", diz Melgoza.

Apesar das solicitações de acesso à informação via transparência, a equipe de jornalistas decidiu não gastar mais tempo. Além disso, a princípio eles tinham desenhado dois cenários possíveis: um com a entrega da informação oficial e outro com a negativa de entrega.

Segundo Melgoza, o conselho é considerar o tempo máximo de publicação para a investigação. Ele lembra que obter os dados sobre o consumo de água por empreendimento levou oito meses de análise documental. Trata-se, completa González, de interrogar o documento, o que talvez não resolva a investigação, mas pode dar pistas.

Lições da investigação

Tanto González como Melgoza compartilham essas lições:

  1. Trabalho multidisciplinar. Desde a concepção da hipótese, passando pelo desenvolvimento, pós-produção e verificação, toda a equipe tem que saber no que está trabalhando, não importa a complexidade da investigação
  2. Delimitar a investigação. Fazer a cobertura de empreendimentos imobiliários demanda muito trabalho e armadilhas impostas pelas empresas, por isso é importante fixar um limite da hipótese; não fazê-lo pode levar ao desgaste da equipe
  3. Localizar os poderosos. Encontrar quem são os grandes agentes ajuda a dar fundamento à investigação
  4. Aproveitar as capacidades da equipe. Confiar nas habilidades de cada integrante da equipe dá tranquilidade à investigação
  5. Escutar. Jornalistas devem escutar as pessoas ou comunidades afetadas por um problema, não só para narrar as histórias ou ilustrar de maneira precisa, mas também porque os repórteres se vão depois que a matéria é publicada, enquanto os afetados permanecem

Imagem principal por Sean Pollock via Unsplash. 

Imagens do artigo cedidas por N+Focus.