A receita de sucesso da Nigéria: uma produtora cearense voltada para questões regionais e sociais

Apr 12, 2021 em Jornalismo multimídia
Da esquerda para direita: Yargo Gurjão, Roger Pires e Bruno Xavier. Créditos: Davi Pinheiro

Combater estigmas por meio da comunicação e trazer o regional para o universal são desafios que há dez anos a Nigéria decidiu assumir. A partir de um enfoque local para questões sociais, a produtora, que começou como um grupo de amigos que gostava de cinema, já lançou documentários, séries, campanhas institucionais e até obras humorísticas seguindo o melhor estilo cearense de comédia. 

“Nos conhecemos quando ainda éramos estudantes de jornalismo e fazíamos trabalhos para ONGs dando aula de audiovisual em escolas públicas”, conta Yargo Gurjão, diretor e cofundador da empresa junto com Roger Pires e Bruno Xavier

O nome “Nigéria” foi criado em alusão ao mercado cinematográfico daquele país, segundo maior do mundo em produção de filmes, atrás apenas da indiana “Bollywood”. Na cena nigeriana, os filmes são lançados diretamente em DVDs, CDs ou VHS, ao invés de serem exibidos em cinemas — o que serve para popularizar as películas e alcançar uma fatia muito maior de público com produções nacionais. 

O grupo começou focando em documentário, até hoje o principal produto. “Fizemos um para a Agênca Pública sobre o Eixão das Águas no Ceará, mostrando como a água era direcionada para indústrias mas não para as pessoas que precisavam, e produzimos algumas peças para a TV Folha”, comenta o diretor.  

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Em 2013, com o estouro das manifestações no país, produziram a obra “Com Vandalismo”, que tem quase 280 mil visualizações no YouTube. “Piratearam a gente, que era o nosso sonho. Vimos camelôs vendendo nosso filme”, comemora Gurjão. 

A estreia nas telas de cinema ocorreu em 2015 com o longa “Defensorxs”. A narrativa documental traça um panorama sobre defensores e defensoras de direitos humanos nas cinco regiões do país.

“Começamos a entender que o jornalismo que estávamos fazendo cada vez mais migrava para o audiovisual como um todo. Fomos vendo a importância de nos atualizarmos, de estudar as linguagens e integrá-las. Hoje temos experiência em TV, internet e cinema”, argumenta o cofundador. 

 Roger Pires, Yargo Gurjão e Bruno Xavier trabalhando. Crédito da foto: Davi Pinheiro.
 Da esquerda à direita: Roger Pires, Yargo Gurjão e Bruno Xavier gravando uma entrevista. Crédito da foto: Davi Pinheiro. 

Autocrítica e humor 

Com a eleição de Jair Bolsonaro, os jornalistas perceberam que o tipo de mensagem que defendiam, de cunho progressista, não estava chegando ao povo. “Se o Bolsonaro ganhou, é porque tinha algo errado. A gente não soube se comunicar com a população”, analisa. Nesse contexto, o grupo, crítico às corporações midiáticas brasileiras, faz uma autocrítica. 

“Hoje entendemos que é importante que esses grandes meios existam, mas que também sejam democráticos e abram espaço para outras produções”. Um exemplo dessa mudança de visão foi a parceria feita com o Canal Futura para a criação da série “Passarinhas”, que mostra o uso de tecnologias agroecológicas por mulheres do semiárido nordestino.

O humor foi algo que o grupo percebeu ser importante para alcançar as populações jovens e periféricas. Diante disso, foi criado o “VetinFlix”, rede de influenciadores digitais, videomakers e artistas de Fortaleza, como o Suricate Seboso. “Fizemos o ‘La Casa Duz Vetin’ (paródia da série ‘La casa de papel’) para chegar na chamada ‘geração nem-nem’ (nem estuda, nem trabalha), com quem só os humoristas conseguiam falar. Queríamos acabar com esse estereótipo dos ‘vetins’ (diminutivo de ‘pivete’), os ‘jovens negro de periferia que vão te assaltar’.” 

O sucesso desse hub criativo garantiu seleção em chamada interna da Globo para telefilmes, e uma nova produção — um filme humorístico com elenco composto pelos próprios jovens da periferia — será veiculada na TV aberta.

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Obstáculos e dicas 

A sustentabilidade financeira sempre foi um desafio e por isso o cofundador da Nigéria recomenda que é preciso ser dinâmico e não focar em apenas um formato. “Fizemos de tudo (campanhas institucionais, jornalismo, ficção) porque se uma coisa não desse certo, outra podia dar”, diz Gurjão. No início, editais culturais da Prefeitura de Fortaleza, do Governo do Estado e da Ancine foram a principal fonte de receita. 

Para Ricardo Gandour, jornalista e consultor em comunicação que dirigiu veículos como a CBN, o financiamento é o principal problema enfrentado pelo jornalismo, mas o vetor “proximidade” pode representar uma oportunidade para as mídias locais. “Estar em vários locais é caro para as grandes empresas do setor, exige equipes. Fazer parcerias e buscar patrocínios e anunciantes locais são caminhos para veículos regionais se bancarem.” 

Conhecer o local onde se vive é muito importante para quem deseja atuar regionalmente. Para Gurjão, a grande mídia não entende a periferia e o semiárido. “A gente convive e tem amizade com as pessoas desses bairros. Temos que trazer o regional para o universal e entender o que as pessoas querem consumir é uma ‘virada de chave’ para produzir conteúdo com o qual elas se identifiquem e que traga algo que ajude na formação social de cada um.” 

Outro conselho que ele dá é para ter contatos no local antes de entrar numa comunidade. “Além da existência de facções criminosas, é até uma questão de respeito com as pessoas que moram nesses lugares. Não chegamos gravando de qualquer jeito.” 

A expectativa é que no próximo ano o grupo produza, em parceria com a TV O Povo, de Fortaleza, uma série sobre turismo sustentável, além de um documentário que será gravado na África. “A nossa missão é trazer uma outra visão da periferia e do semiárido para a Fortaleza que nem sabe o que são esses lugares. Nos vemos como uma ponte que leva informações para as pessoas buscando combater estigmas para realizar uma transformação social através da comunicação”, conclui Gurjão.


Raul Galhardi é jornalista e mestre em Produção Jornalística e Mercado pela ESPM-SP. Portfólio e Medium.

Imagens cortesia da Nigéria, por Davi Pinheiro