Que importância você dá às fontes dentro de uma pauta?

Dec 3, 2023 em Jornalismo básico
Pauteira

Não tem como negar: as facilidades da tecnologia deixaram o jornalismo mais superficial. Muitas vezes as "aspas" são retiradas das redes sociais do que poderia ter sido uma entrevista exclusiva. E em outras vezes, especialistas como fontes aparecem apenas para referendar pontos numa reportagem, cujo recorte já estava definido ainda na etapa da produção da pauta.

A agenda de contatos de um jornalista sempre foi sua principal ferramenta. E deveria continuar sendo. Para produzir reportagens mais aprofundadas ou mesmo notícias diárias diferenciadas, saindo do lugar comum, um caminho simples é sempre fazer contato prévio com as possíveis fontes, antes de fechar a pauta sobre um determinado tema.

Fonte como guia de uma pauta

Um exemplo recente feito no Amazônia Vox ajuda a ilustrar melhor este princípio. Foram abertas bolsas de reportagem do Dart Center sobre Primeira Infância no Brasil. Para propor a pauta, foi acionada uma médica que trata do tema da primeira infância, em conversa informal. Foi acertado que o recorte seria algo relacionado na Amazônia, identificando um problema comum, mas que tivesse solução e iniciativas concretas neste sentido.

A profissional, como é da área, recomendou então observar dados de cobertura pré-natal, uma vez que a região estava abaixo da média nacional. Na apuração junto aos dados do Sistema Único de Saúde (SUS) foi verificado que dos 100 municípios brasileiros com piores índices de atendimento pré-natal adequado (sete ou mais consultas), 95 estão em Estados da Amazônia Legal. Tivemos ainda sugestões de iniciativas locais para enfrentar esse problema e, após todas as etapas, a pauta foi selecionado e a reportagem publicada.

Manter contato com fontes

A produção de uma pauta não pode tomar como base o achismo de uma reunião de pauta. Ouvir a opinião de fontes antes de fechar a pauta, e não apenas depois. “O caminho para criar e manter o relacionamento com uma fonte depende muito de se fazer presente. Ideal é ter rotina de tomar um café, conversar", diz o jornalista José Brito, especialista em jornalismo investigativo e com passagens pelas principais redações do país. "Se for impossível pela correria, é sempre bom mandar uma mensagem, perguntando se tem novidade, se está sabendo de algo. A conversa informal é fundamental para descobrir pautas”. 

Brito cita como exemplo uma pauta que surgiu após uma conversa despretensiosa com um servidor da Câmara dos Deputados, em Brasília. “Ele comentou sobre um boato de que parlamentares estavam usando a cota parlamentar para locar carros, pagos com dinheiro público, mas ficavam com esses carros depois”, relembra ele.

A conversa virou uma reportagem publicada. “Comecei a investigar, analisei as notas digitalizadas disponíveis no site da Câmara e percebi que um dos carros estava sendo frequentemente locado. Ao final do mandato, descobri que o deputado tinha passado o carro para o próprio nome, inclusive com o IPVA pendente. Ao questioná-lo, ele não forneceu o comprovante de pagamento, indicando que comprou o carro com dinheiro público”, diz o jornalista.

Fontes fora da bolha abrem novas perspectivas

A pesquisadora audiovisual e jornalista investigativa, Flávia Prado, destaca a importância de manter o estilo “old school”, como brinca. “Comecei a trabalhar antes das redes. Então, não faço entrevista por WhatsApp", diz Prado. "Não estou menosprezando e entendo que facilita, pela correria do dia a dia, mas o meu método de trabalho continua sendo de falar com as pessoas, gravar conversas, porque funciona melhor para mim”, reforça.

Indicada ao Emmy Awards de 2023 e vencedora do 39º Prêmio de Direitos Humanos de Jornalismo nas categorias Especial e Televisão, Prado afirma que boa parte da inspiração para as produções surge durante conversas informais e com fontes diversas. “Ando e converso fora do trabalho com amigos jornalistas. Mas eu não gosto de restringir o meu círculo pessoal, porque senão ficamos com olhar muito enviesado”, afirma.

Flávia cita uma reportagem que está em finalização e será veiculada na Agência Pública sobre direitos humanos e mulheres. “Fui com uma ideia muito preconcebida. Mas encontrei outras complexidades e abriu uma perspectiva bem diferente e a abordagem foi para outro lado. Observar com cuidado e atenção produz algo mais respeitoso, não apenas com os seus valores morais”.

Tempo ainda é privilégio mas há soluções

Ambos os entrevistados concordam que, no atual cenário, é um luxo ter tempo para produzir reportagens especiais. “O jornalismo profissional funciona numa velocidade muito rápida. Considero um privilégio em nosso mercado de trabalho de ouvir as minhas fontes antes da pauta em si e não apenas fazê-las caber nas minhas reportagens”, afirma Prado.

Não é impossível escutar fontes antes de produzir uma pauta. “Às vezes uma ligação comentando o assunto e perguntando se tem uma ideia, se sabe de algo, pode dar um caminho que você e os colegas da redação não estavam percebendo”, afirma Brito.

Cinco dicas para aplicar a escuta de fontes antes da produção de pautas:

  1. Encontros presenciais: Nada substitui "o cafezinho". Uma conversa informal periódica ajuda a construir confiança e surgem boas pautas naturalmente.

 

  1. Diversifique suas fontes: Busque contatos em diferentes ambientes, de áreas fora do jornalismo, para obter perspectivas mais abrangentes para os assuntos que vai reportar.

 

  1. Considere o que ouviu: Muitas vezes, a escuta de fontes leva a pauta para outro caminho. Isso é importante antes de estruturar a matéria para descobrir diferentes nuances e dados.

 

  1. Se for online, vá além da mensagem: Virou uma “regra” mandar mensagem perguntando o melhor horário para ligar e conversar. Mas, ligue e converse, evite a troca de menagens simples, com envio de perguntas e recebimento de respostas prontas. Mesmo na entrevista podem surgir outros caminhos da pauta.

 

  1. Combine online e offline: Use redes sociais para conhecer fontes diversas, comunidades, ativistas, pesquisadores e, na medida do possível, tente estabelecer uma relação com encontros presenciais ou pelo menos por vídeo chamadas.

Foto: Flávia Prado (Arquivo Pessoal)