Pesquisa em redações do Brasil não encontra nenhuma pessoa negra em cargo de chefia

Aug 25, 2024 em Diversidade e Inclusão
Chefe negra

Quem ocupa posições editoriais nos veículos jornalísticos possui importância prática e simbólica. Como elementos centrais na liderança dos meios de comunicação, são os editores que modelam os rumos do jornalismo e o que ele deve ser.

Diante dessa constatação, é preocupante o cenário brasileiro revelado pelo estudo “Race and leadership in the news media 2024: Evidence from five markets” que mostra que, no Brasil e na Alemanha, nenhum dos veículos pesquisados possuía pessoas negras em cargos de chefia entre 2021 a 2024.

O levantamento, realizado Reuters Institute, analisou de 2020 a 2024 a porcentagem de pessoas negras em cargos de chefia em 100 redações de cinco países (EUA, África do Sul, Alemanha, Reino Unido, Brasil). As conclusões foram alarmantes, especialmente no caso brasileiro.

Em 2020, apenas 5% dos editores no Brasil eram negros, o que revela uma piora na representatividade nas redações de lá para cá. Para a jornalista Marília Moreira, diretora de operações e tecnologia do Instituto Azmina, a discussão sobre diversidade ainda é muito recente. “O Brasil deixou de ser um país escravocrata há menos de 150 anos. Tivemos avanços gigantes em muitas frentes, mas também parecemos estagnados em tantas outras”.

 

Moreira nasceu e trabalha em Salvador, cidade onde 83,2% da população se declara negra ou parda, segundo dados do último Censo 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Porém, segundo ela, esse fato não muda muito a realidade das redações.

“Se formos comparar isoladamente o número de pessoas negras em redações em Salvador com o de outras no Brasil, acho que aqui ainda temos um número maior, mas, comparando com a população total da cidade, essa sub-representação é a mesma ou talvez até pior, já que aqui temos uma população negra numericamente maior”, analisa.

Sem espelho

A pesquisa revela também que 23% dos 75 principais editores das 100 marcas abrangidas são negros, apesar de, em média, 44% da população em geral nos cinco países ser negra. Outro dado mostra que, no Brasil, há menos editores negros do que jornalistas negros, embora, segundo o Censo 2022, 55,5% da população se identifique como preta ou parda.

“É um cenário triste, que pode desestimular qualquer profissional preto a continuar na luta. Não ter chefes negros é não ter um espelho e em quem se inspirar. O retrato das redações é o retrato da sociedade”, afirma a jornalista especializada em saúde Carolina Marcelino, Chefe de Comunicação do Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo) e repórter do programa CNN Sinais Vitais.

Outra informação trazida ainda pelo estudo é que a parcela de usuários de notícias online que afirmam ler notícias de pelo menos um grande meio de comunicação com um editor negro varia de 0% no Brasil e na Alemanha a 90% na África do Sul.

Preconceito no trabalho

Esse quadro revelado pelo levantamento seria fruto, segundo Marcelino, da falta de interesse dos brasileiros em promover a igualdade racial. “Será que existe um interesse real dos brasileiros em igualar os direitos profissionais entre brancos e pretos? Está evidente que não porque igualar significa renunciar aos privilégios e ninguém está disposto a isso. As empresas criam setores de diversidade, mas no meu ponto de vista apenas no papel”, defende. 

Ela conta um episódio de racismo que sofreu em uma emissora. “Certa vez, um diretor de TV disse que eu seria uma ótima repórter de carnaval. Demorei anos para entender que ele foi racista comigo e que, por ser uma mulher negra, na cabeça dele eu só poderia cobrir aquele tipo de pauta”.

É triste dizer, mas enquanto mulher, negra, nordestina, que passou por redações, que são locais muito hostis, masculinos e brancos, já sofri preconceitos e situações decorrentes dessa estrutura. Chegaram a duvidar da minha capacidade de cobrir determinados temas por ser negra e já me colocaram para cobrir uma pauta mais difícil, que exigia esforço físico, por julgarem que sou mais resistente fisicamente por ser negra”, afirma Moreira.

Em outro caso, Marcelino fala que presenciou amigas que foram obrigadas a alisar o cabelo ou incentivadas a usarem apliques lisos para deixar suas imagens mais europeias. “Tenho também o relato de uma amiga que foi exposta no meio da redação. Ela trabalhava em produção e usava o cabelo ‘black power’. O apresentador principal passou por ela e fingiu que estava procurando uma caneta no cabelo dela”, relata. 

Ações contra a discriminação

Para a diretora do Instituto Azmina, entretanto, o negro estar dentro das redações não é o único fator promotor de mudança. “Podemos acabar caindo no problema do negro ser usado como um ‘token’ ou como um ‘selo’ de diversidade da empresa. As ações de diversidade são bem-vindas desde que sejam tiradas do papel de fato”, afirma.

Ela defende que já está comprovado que uma equipe diversa pode fazer um jornalismo mais diverso e que é preciso os veículos adotarem um olhar descolonizado priorizando contratações de pessoas negras, LGBTQI+, mulheres e mulheres que são mães.

“Todo assunto pode ser abordado através das lentes de raça, gênero, de território, desde a seleção das fontes até a forma como o tema será enquadrado. Isso, porém, deve ser feito não só por jornalistas negros, mas sobretudo por jornalistas brancos, que são quem domina os cargos de liderança”, diz Moreira.

“A composição racial e étnica da gestão da redação pode moldar a diversidade na contratação, retenção e promoção; a cultura das redações; e o próprio conteúdo das notícias”, complementa Marcelino.

Outro ponto considerado importante por Moreira é a criação de um plano de desenvolvimento de carreiras que inclua não só jornalistas negros, mas também profissionais mais novos e mulheres, que acabam esbarrando no etarismo, machismo e racismo. “Isso impacta na nossa própria compreensão de se é possível seguir nessa carreira”, afirma.

“Vestir a camisa antirracista é fundamental e ter um colega de trabalho aliado a nossa causa faz toda a diferença. Portanto, é preciso investir em diversidade desde a contratação, criando planos de carreira e políticas afirmativas de inclusão de fato”, diz Marcelino.


Foto: Canva