Os dados produzidos pelo jornalismo periférico

Nov 5, 2023 em Diversidade e Inclusão
Manifestação

Historicamente, a mídia sempre demonstrou resistência ao cobrir fatos relacionados às favelas, desde que os enquadramentos de suas narrativas não fugissem dos estereótipos de violência e as classificassem como territórios hostis justificando reações mais enérgicas das forças de segurança do Estado.

O tempo passou e pautas relacionadas a Direitos Humanos ou Segurança Pública foram se multiplicando, resultando em matérias e reportagens abordando problematizações mais “lúcidas” através de números produzidos por diversas organizações, tais como Fogo Cruzado,  Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Instituto Igarapé, entre outros, além de fomentar novos debates em torno de políticas públicas.

Produção periférica rompendo barreiras

Coletivos de favelas ou organizações que contam com colaboradores oriundos de áreas periféricas também passaram a disputar espaços para a publicação de suas sistematizações de dados. Mas será que essa disputa é igual? Que relevância existe para o chamado “jornalismo profissional” cobrir pautas que envolvam dados e estatísticas que possam tirar autoridades públicas de suas zonas de conforto ao encarar problemas relacionados à favelas e periferias?  

Pablo Nunes é doutor em ciência política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ) e coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), que tem como objetivo monitorar e difundir informações sobre segurança pública, violência e direitos humanos, além de fenômenos de violência e criminalidade. Ao analisar a relação entre grande mídia jornalística e a produção de dados de organizações, especialmente as oriundas de favelas, Nunes considera que há uma forte tensão baseada em um duplo movimento: na medida em que as produções de dados vindas das periferias se iniciam como uma forma de dar resposta a uma ausência de cobertura jornalística relacionada a esses lugares e na inegável influência de como a mídia hegemônica sempre difundiu dados de forma tendenciosa.

 “Chama bastante atenção é que boa parte dessas iniciativas de produção de dados também se utiliza dos dados produzidos pela grande imprensa, o que torna essa relação pouco mais complexa no sentido de que, de certa maneira, existe ainda uma referência a essa grande imprensa, mesmo que seja uma referência a partir de olhar crítico”, afirma Nunes.O estudioso acredita que pautar a grande mídia com os dados produzidos pelo CESeC resulta em possíveis mudanças sobre narrativas acerca de políticas de segurança pública. Mas ele reconhece que ainda é um processo gradual e ainda insuficiente.

“Num determinado momento, a gente tinha uma dificuldade de ver alguns atores e alguns temas sendo tratados pela grande imprensa. Isso mudou aos poucos a partir desse tensionamento, da agenda relativa à cobertura da imprensa tradicional", diz Nunes. Ele destaca um momento crucial quando houve a intervenção federal de 2018 no Rio de Janeiro. "O jornal O Globo teve uma postura muito favorável à intervenção federal e foi realmente desafiador pra gente publicar qualquer matéria ou informação negativa. Foi muito decepcionante. Editoriais comemorando, enquanto sabíamos os muitos problemas na área de segurança pública que estavam decorrendo dessa prática”, lamenta Nunes.

Geração cidadã de dados

LabJaca é um laboratório de pesquisa localizada na Favela do Jacarezinho, zona norte da cidade do Rio. Ela é uma das criadoras de um conceito chamado “geração cidadã de dados” onde a construção de narrativas sobre favelas e periferias busca traçar ações que representem as reais demandas dos moradores e das instituições. Em 2021, o LabJaca realizou um de seus grandes feitos: a pesquisa Custo das Operações Policiais”, que demonstrou que o investimento do Estado em militarização das polícias poderia ter sido melhor utilizado em políticas sociais emergenciais no contexto da pandemia da COVID-19 e também em políticas intersetoriais de prevenção da violência. O laboratório concluiu, por exemplo, que o custo de um helicóptero blindado, popularmente conhecido como “caveirão voador”, foi avaliado em mais de R$ 22 milhões. Logo, se este custo fosse empregado para a proteção da população durante a pandemia, 88 mil auxílios emergenciais no valor de R$ 250 teriam sido distribuídos na época.

Bruno Sousa é um dos fundadores e diretor de comunicação do LabJaca. Ao analisar a relação entre a grande mídia jornalística e a produção de dados de organizações, especialmente as oriundas de favelas, o jornalista tem uma perspectiva mais decepcionante, a ponto de relatar que “em muitos momentos ela é desrespeitosa”.  Porém, ele reconhece que o contexto já foi muito pior.  

“A própria mídia tem se moldado mais às questões sociais mais recentemente. Mesmo que com uma evolução tímida, ela tem tido mais sensibilidade para tratar de alguns assuntos, mas ainda acho que é uma relação que precisa ser melhorada", diz Souza. "No caso específico do LabJaca, a gente sempre tentou estabelecer a nossa narrativa e reforçar a mensagem que a gente queria passar, de uma forma que a gente não fosse estereotipado”.

O LabJaca tem colecionado experiências em produções de dados que foram utilizadas por outras mídias. Uma pesquisa sobre masculinidade em favelas, por exemplo, foi divulgada no Jornal da Band. Mas Souza faz ressalvas.“Eu acho que nunca vai ser cem por cento como a gente deseja. Muitas vezes por mais que a gente consiga pautar, acaba tendo aquele olhar meio exótico pra favela, para o tipo de produção que é feita ali. A gente está bem satisfeito dentro do possível", diz ele. "Muita coisa aconteceu desde 2020. Deixamos de ser tratados como um coletivo de jovens negros que se reuniram para reduzir os impactos que a pandemia causava na favela. E hoje, quase três anos depois, os veículos procuram a gente pra saber se a gente tem algum dado sobre determinado assunto. Conseguimos mudar a forma como nos comunicamos e como queremos ser pautados pela mídia”.


Foto: Manifestação contra violência policial no Alemão (publicada em reportagem do CESeC)


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