Este artigo foi produzido em colaboração com o programa de Jornalismo & Desinformação da PEN America, que atua na interseção entre literatura e direitos humanos para proteger a liberdade de expressão nos EUA e no mundo. A desinformação representa uma ameaça fundamental à livre expressão e democracia. Visite a central online Facts Forward para encontrar mais materiais úteis para combater a desinformação.
Em 2022, a repórter Melissa Sanchez, do ProPublica, ouviu a história angustiante de um trabalhador agrícola que tinha atropelado fatalmente o filho com uma minicarregadeira de 3 toneladas.
Sanchez estava investigando mortes e ferimentos em pequenas fazendas no país, com um interesse específico em como esses acontecimentos estavam afetando trabalhadores imigrantes. A reportagem viria a se transformar na série "Laticínios dos EUA", coproduzida com Maryam Jameel
A jornalista foi ao Wisconsin e procurou José, o pai sobre o qual ela havia ouvido falar. Ela começou visitando um restaurante mexicano perto da fazenda. Sanchez, que fala espanhol, descreveu o processo de busca por José em um relato em primeira pessoa para o ProPublica:
"[No restaurante] eu fui direto até a cozinha e perguntei se alguém da Nicarágua trabalhava lá", escreveu. "Por sorte, um homem do norte da Nicarágua veio e me disse que já tinha trabalhado uma época com José em uma outra fazenda. Mais tarde, no horário de almoço, nós fomos ao apartamento dele, de onde ele enviou para José um áudio do WhatsApp sobre mim."
O resultado da apuração persistente de Sanchez foi uma revelação: José não tinha atropelado o filho. Outra pessoa da fazenda operava o veículo.
A história de um pai que mata o filho sem intenção – veiculada pela mídia local – era uma desinformação baseada em um interrogatório inicial que um subdelegado fez com José. Como se não bastasse a dor imensa pela perda do filho, José carregou injustamente o fardo da culpa. Os registros teriam permanecido imprecisos se não fosse uma boa e velha reportagem investigativa.
Meus colegas no programa de jornalismo e desinformação da PEN America têm falado com repórteres, editores e organizações profissionais e de defesa do jornalismo nos últimos 18 meses sobre como eles vivenciam a desinformação.
Em 2021, a PEN fez uma pesquisa com mais de 1.000 repórteres e editores sobre o tema. Mais de 90% disseram que a desinformação tinha afetado seu trabalho nos últimos anos e 81% disseram que este era um problema sério. Mas quando se trata de práticas que podem ajudar os jornalistas em seus esforços para combater a desinformação, muitos dos respondentes disseram que suas redações não as estava implementando.
Parte da razão pode ser porque estamos pensando demais no que significa combater a desinformação efetivamente. As técnicas mais efetivas para desmascarar esse tipo de conteúdo não exigem tecnologia sofisticada, mas sim ouvir as pessoas e propor formas inovadoras de gerar o interesse delas no ambiente digital e na vida real.
Indo para a rua
Enquanto produziam a série de reportagem, Jameel e Sanchez reconheceram que chegar até os trabalhadores agrícolas imigrantes na região rural do Wisconsin seria um desafio.
"Eles têm turnos de trabalho malucos – trabalham 60 ou 80 horas –, são muito isolados, não podem dirigir legalmente e vivem na fazenda", diz. Para chegar até eles, "nós fizemos várias tentativas aleatórias".
Sanchez primeiro fez panfletos simples explicando em espanhol que era uma repórter que queria conversar com trabalhadores agrícolas. Ela e Jameel espalharam esses panfletos em pequenos mercados no Wisconsin onde elas sabiam que as pessoas iriam para descontar cheques.
Depois da primeira matéria ser publicada, a equipe de infografia da ProPublica criou panfletos mais sofisticados e um livreto com a matéria para ser distribuído. A equipe também encomendou a produção de uma versão em áudio em espanhol da matéria.
"Esse foi o jeito das pessoas terem acesso de fato às matérias, porque muitas têm baixa taxa de alfabetização e não conseguem ler", diz Sanchez. José, por exemplo, estudou somente até a primeira série. Ele disse a Sanchez que ouviu a matéria sobre a morte do filho várias vezes.
"Foi ouvindo o áudio que ele conseguiu de fato entender como o filho tinha morrido", diz.
Na pesquisa feita pela PEN America, só 38% dos jornalistas e editores disseram que faziam contatos diretos de forma regular para desenvolver o relacionamento e confiança de suas audiências. Isso pode ser o resultado dos recursos cada vez mais limitados para o trabalho dos repórteres, redução de equipes de apoio e pressão crescente para fazer a cobertura rápida de assuntos do momento – e esta é uma razão pela qual a desinformação é disseminada inadvertidamente pelas pessoas que mais se importam em freá-la.
Como demonstra o exemplo do panfleto, ganhar a confiança de uma comunidade não precisa ser algo caro ou complicado.
Alguns dos segmentos da população mais vulneráveis à desinformação são os mais velhos, pessoas em áreas rurais e comunidades de imigrantes. Lideranças nas redações podem fazer uma grande diferença no combate à desinformação se derem às suas equipes tempo e liberdade criativa para ir até onde as pessoas estão.
Em muitos casos, a única forma de chegar no coração de uma pauta é conversando com as pessoas envolvidas.
Na PEN, além de oferecer orientação para jornalistas sobre o combate à desinformação por meio dos materiais do Facts Forward, nós também fazemos trabalho de engajamento de comunidade em campo para ajudar os repórteres e a população a reconhecer e combater narrativas imprecisas.
Nós estamos trabalhando em três cidades cruciais que estão passando por mudanças demográficas e políticas: Miami, Dallas e Phoenix. Nesses lugares, estamos investindo na resiliência da comunidade contra informação falda e enganosa por meio de eventos comunitários e parcerias com a mídia local.
O guia Trusted Messenger, feito pela PEN, tem informações úteis para repórteres e editores sobre engajamento da comunidade, com ideias de repórteres do Resolve Philly, Politico, Texas Tribune e Votebeat.
Escute com atenção e "cedo o bastante para que você permita que aquilo que você ouve da comunidade vá de fato moldar a sua cobertura", diz Annie Yu, diretora de engajamento do Politico. "As pessoas reagem a pessoas." A redação onde ela trabalha obteve sucesso no tratamento de vácuos de informação respondendo dúvidas com regularidade e um toque pessoal.
A tecnologia como uma ferramenta
As redes sociais são um solo fértil para a desinformação.
Na pesquisa feita pela PEN, a grande maioria dos jornalistas entrevistados disseram que precisavam aprender mais sobre ferramentas para combater a desinformação online, incluindo ferramentas para detecção de bots e verificação de imagens.
Ferramentas como o Sensity.ai e a busca reversa de imagens no Google ajudam a identificar imagens e vídeos alterados ou descontextualizados. Organizações como The Markup e Bellingcat oferecem ótimos recursos diariamente sobre o uso de tecnologias e técnicas de inteligência de código aberto (OSINT na sigla em inglês) para rastrear quem gera desinformação e corrigir narrativas falsas.
A PEN America também fornece insights e atualizações sobre IA generativa e desinformação, bem como orientações para o uso de ferramentas online de verificação.
Dito isso, a tecnologia não é uma salvadora – principalmente as formas iniciais de IA generativa – e nem toda redação tem condições de usar e estabelecer padrões com softwares e ferramentas caras.
Novas tecnologias podem ser animadoras, mas há razão para ter cautela com o uso delas na produção de reportagens.
Uma plataforma amplamente acessível e confiável de detecção de deepfakes ainda precisa chegar ao mercado. As que já existem podem ter um custo proibitivo para jornalistas que trabalham em veículos com recursos limitados.
Vários jornalistas, incluindo o novo diretor de iniciativas de IA do New York Times, já apontaram que o ChatGPT e outros modelos de aprendizado de máquina podem ser úteis para repórteres em tarefas como análise de dados e programação, mas eles ainda precisam de muita supervisão humana para fornecer uma assistência adequada aos jornalistas.
"Eu me preocupo com redações pequenas e com equipes enxutas que dependem demais de ferramentas como essas enquanto o setor sofre com demissões e veículos fechando", disse o jornalista de dados Jon Keegan em uma coluna recente para o The Markup. "E quando não há orientação da liderança da redação relativa ao uso dessas ferramentas, isso pode levar a erros e imprecisões."
Ferramentas online de verificação, detecção de bots, dentre outras, que podem ser úteis na investigação de potenciais fontes de desinformação ficam obsoletas quando as redes sociais mudam suas regras, ameaçam proibi-las ou desmantelá-las. Este foi o caso do Bot Sentinel; do WhoTwi, a antiga ferramenta de análise gráfica do Twitter; e mais recentemente, do CrowdTangle, ferramenta de monitoramento de redes sociais.
Os metadados – as informações presentes em fotos que indicam quando e onde elas foram tiradas – um dia chegou a ser um método confiável de verificação, mas hoje a maior parte das redes sociais elimina esses dados como medida de privacidade.
O resultado é que o mundo da tecnologia de combate à desinformação é acelerado – novas ferramentas surgem e somem – e em muitos casos isso significa estar à mercê dos caprichos de empresas privadas e das decisões que elas tomam em relação às suas plataformas.
Na pesquisa da PEN, somente 35% dos respondentes disseram que suas redações estavam implementando mudanças para atrair e contratar jornalistas que iriam assegurar uma variedade de perspectivas. Apenas 21% disseram que suas redações estavam dedicando recursos para a construção de relacionamentos nas comunidades onde é mais provável que a desinformação circule.
Em ambos os casos, mais de 60% dos entrevistados disseram achar que essas medidas seriam eficazes no combate à desinformação.
Nos preparativos para a eleição 2024, os editores vão fazer bem em apoiar jornalistas reais – no sentido de humanos – que têm o conhecimento cultural e profissional para conter a desinformação quando ela surgir. Quando o assunto é desmascarar a desinformação, use a tecnologia, mas priorize as pessoas.