Não é sobre IA: em direção a um jornalismo focado no usuário e sustentável

Mar 13, 2024 em Inovação da mídia
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Oi, meu nome é Mattia Peretti e eu sou bolsista do programa ICFJ Knight 2024. Eu me tornei bolsista para explorar como a IA generativa pode ser usada por veículos jornalísticos para servir melhor suas comunidades, e passei as últimas quatro semanas conversando com muitas pessoas inteligentes no setor para entender essa proposta e descobrir o que criar a partir dela.

Eu aprendi muitas coisas, mas duas acima de tudo. Primeiro, minha proposta tem falhas e precisa ser invertida: "como a IA pode ser usada" é um enquadramento errado. Segundo, chegamos a um momento crítico do jornalismo e o consenso está crescendo: não conseguimos tornar a profissão mais sustentável sem novas soluções radicais e a criação de produtos que os usuários de fato queiram. O papel que a IA pode vir a ter na criação deles é de certa forma irrelevante.

Eu decidi dedicar a minha participação no programa ao estabelecimento das bases para a criação de algo novo: uma comunidade de pessoas que acreditam que a IA pode nos ajudar a construir um futuro sustentável para o jornalismo, mas somente se focarmos primeiro naquilo que desejamos que seja esse futuro. Só então nós devemos avaliar se e como a IA pode – ou não – nos ajudar a construí-lo.

Leia a seguir o que estou pensando e como você pode ser parte disso.

Nós estamos explorando a IA generativa, mas a audiência está em grande parte fora do debate

Eu estou mergulhado neste assunto da IA no jornalismo há cinco anos, mas só recentemente cheguei a uma importante conclusão: nós estamos totalmente equivocados com essa história de IA. Ok, em grande parte equivocados.

Um setor que tem se visto "em crise" por pelo menos 15 anos (não estou inventando esse número: uma busca rápida me retornou um artigo de 2009 falando sobre a crise do jornalismo, e possivelmente há menções mais antigas) e que está ciente de ter realizado uma transição mal feita para o digital, agora segue a moda da IA porque "erramos da última vez, mas não vamos cometer o mesmo erro novamente!".  

E mesmo assim aqui estamos nós. Podemos não estar cometendo o mesmo erro, mas certamente estamos entendendo errado outra vez. Nós estamos seguindo o rastro do Vale do Silício, tentando achar formas de usar todo produto que eles lançam (Uau, tão legal!), sem uma estratégia coerente para o modo como queremos que o potencial da IA seja usado a serviço da nossa visão para um jornalismo sustentável que agregue valor à vida das pessoas.

Pessoas muito mais inteligentes que eu estão começando a achar que o jornalismo como o conhecemos não pode ser salvo. Eu concordo. Mas eu sou um otimista desesperado, por isso acho que podemos reinventá-lo. Só que não vai ser a IA que vai fazer isso por nós, nem vamos ter sucesso simplesmente adicionando uma pitada de IA naquilo que já fazemos. Nós só podemos reinventar o jornalismo abraçando o fato de que nossa missão não é sermos criadores de conteúdo, mas oferecer um serviço baseado na escuta. Se focarmos implacavelmente nessa missão e abrirmos mão dos nossos hábitos de autossabotagem, então a IA pode de fato ajudar de alguma forma.

Eu comecei meu trabalho no programa ICFJ Knight neste ano com uma observação simples: em 2023, nós começamos a fazer experimentos com IA generativa, mas, com muita frequência, a audiência esteve completamente ausente do debate. E continua assim no momento. O objetivo por trás da maior parte do trabalho ligado à IA no jornalismo é buscar ganhos marginais em eficiência e produtividade, quase nunca explorar como a IA generativa pode nos ajudar a repensar e inovar a forma como servimos nossa audiência. 

Sendo claro: é importante que continuemos a trabalhar para que a IA generativa trabalhe a nosso favor, tornando-nos mais ágeis e eficazes. Não há nada de errado com esses esforços. Mas isso não é o bastante. Estamos perdendo uma oportunidade que não podemos nos dar ao luxo de perder se pararmos por aí e falharmos em usar o entusiasmo pela inovação trazido pela IA generativa para termos mais visão de futuro e inovarmos genuinamente a forma como entregamos valor aos nossos clientes. Pode nos ajudar a pagar as contas por mais tempo (e isso é bom), mas não vai contribuir para criar nenhuma sustentabilidade financeira de longo prazo.

Eu não acredito que a saúde do jornalismo deve ser medida pelo número de pessoas empregadas na área, mas não sou cego ao fato de que muitas das rodadas de demissões que vimos nos últimos meses são um sintoma claro da fase de disrupção na qual estamos. E não vai melhorar tão cedo. Bem o oposto disso: o tráfego de motores de busca só vai piorar à medida que a busca por IA generativa se estabelecer.

O que estamos falhando em entender é que a crise do jornalismo é tanto um problema de modelo de negócio quanto é um problema de produto: "a grande mídia talvez seja o único setor no mundo que continua a oferecer uma quantidade inesgotável de produto sem informação real sobre a demanda por ele. Ela está parada onde começou décadas atrás, sem ideia sobre necessidades, hábitos ou expectativas dos usuários, sem novas estratégias de distribuição e sem novas formas de fazer dinheiro."

Estamos em apuros porque não estamos atendendo às necessidades dos nossos usuários. Em vez disso, estamos obcecados com eficiência e produtividade por meio de tecnologia para melhorar o que fazemos, mas continuamos a fazer essencialmente o que sempre fizemos, só que de um modo ligeiramente mais barato e marginalmente mais eficaz.

Criar conteúdo não é a missão

Essa é a minha sugestão:

Nós temos que abraçar de uma vez por todas uma mudança fundamental de mentalidade: pode até ser que o que fazemos é criar conteúdo, mas nossa missão não é criar conteúdo. Muitas vezes nós nos esquecemos dessa distinção e isso dificulta muito pensar de forma criativa sobre nossa missão e a melhor forma de cumprí-la. Porque criar mais conteúdo não é a única forma de cumprir essa missão; na maioria das vezes é o oposto do que deveríamos fazer. 

Nós devemos nos focar implacavelmente nos usuários e em suas necessidades. Perguntar às pessoas o que eles querem e o que precisam, e realmente ouvir o que elas têm a dizer. Especialmente os mais jovens, porque eles são o público para o qual devemos construir se quisermos ser sustentáveis no futuro.

Nós temos que nos dar a oportunidade de imaginar produtos e experiências jornalísticas inteiramente novas sem nos limitarmos pela forma como as coisas são e sempre foram, nem pela urgência de criar imediatamente algo rentável porque estamos em um estado constante de crise. Precisamos abraçar o lúdico, mas com propósito. Em outras palavras, precisamos abraçar a pesquisa e o desenvolvimento (P&D): um conjunto de atividades inovadoras encarregadas de desenvolver novos serviços ou produtos sem ter que gerar lucro imediato.

Precisamos criar uma teoria de mudança que articule como acreditamos que nossas atividades vão levar aos resultados e impactos que queremos alcançar. Quais são os problemas que estamos resolvendo e como os definimos? Como é o futuro de longo prazo que queremos construir e quais mudanças de curto prazo precisamos fazer para pavimentar o caminho que nos levará até lá?

Acima de tudo, precisamos estar dispostos a repensar tudo. O que fazemos, como fazemos, por que fazemos, o que sabemos e o que não sabemos. Como disse o editor do New York Times A. G. Sulzberger em uma entrevista recente ao Reuters Institute, "o caminho a ser seguido em qualquer período de transformação gigante é sempre fazer perguntas, ser cético com as respostas e não acreditar mesmo em qualquer solução imediata."

E eu acho que devemos fazer tudo isso juntos, não cada um por si em seus próprios escritórios.

Eu quero usar este ano como bolsista e a oportunidade única que me foi dada pelo ICFJ para reunir um grupo de pessoas que acreditam que uma mudança é necessária e que queiram fazer parte dela. Eu quero que a gente entenda a IA juntos, pare de recuperar o atraso e em vez disso use-a como uma ferramenta para olhar para frente.

Você quer fazer parte desse movimento? Então me envie um email em mperetti[arroba]icfj[ponto]org com algumas palavras sobre o que mais te tocou neste artigo e vamos em frente.


Imagem principal: Yasmine Boudiaf & LOTI / Better Images of AI / Data Processing / CC-BY 4.0.

A editoria da IJNet Português traduziu este texto originalmente escrito em inglês por Mattia Peretti.


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Mattia Peretti

Mattia Peretti é designer de experiência de aprendizagem, gerente de projetos e consultor em IA que trabalha com jornalismo e mídia, e também bolsista do programa Knight do ICFJ. De 2019 a 2023, Mattia foi diretor do JournalismAI, iniciativa conjunta da Polis - o centro estratégico de jornalismo da London School of Economics and Political Science - e da Google News Initiative, e cujo objetivo é empoderar organizações jornalísticas a usarem inteligência artificial com responsabilidade. Ele é apaixonado por sistemas de pensamento, design de experiência de usuário, análise de dados e construção de comunidade.