Faz 15 anos que a Organização Mundial da Saúde mantém um programa de formação sobre segurança viária para jornalistas, tendo alcançado mais de 2 mil profissionais de redações em cinco continentes. A instituição considera que o apoio da mídia é parte indissociável dos esforços atuais para cortar pela metade, até 2030, as mais de 1,35 milhão de mortes e 50 milhões de lesões graves provocadas anualmente por veículos automotores.
Os custos da inação são altos. A Iniciativa Programa de Avaliação Rodoviária (iRAP em Inglês) tem um website no qual é mostrado a despesa anual no atendimento das ocorrências. A soma dos gastos de todos os 175 países pesquisados totaliza 2,2 trilhões de dólares, entre tratamentos médicos, socorro emergencial e interrupção no rendimento das famílias afetadas. É algo em torno de 5% do PIB mundial.
Mesmo com números aterradores, o resultado dos impactos sociais e financeiros provocados pela carnificina do trânsito é abordado de forma rasa pela imprensa que se limita à divulgação de balanços dos “acidentes” que aconteceram nas estradas ao final das férias, ainda que o número de ocorrências e vítimas sejam semelhantes aos ocorridos em desastres de aviões.
Bem-estar da humanidade
A segurança viária, porém, é tão relevante para o bem-estar da humanidade que faz parte da Agenda 2030 da ONU e integra os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentáveis (ODS) com a meta 3.6. Foi ainda motivo de três conferências ministeriais (Rússia-2009, Brasil-2015 e Suécia-2020), nas quais os representantes dos países-membros assumiram vários compromissos para enfrentar o problema e, sobretudo, agir para contê-lo.
Por ser um dos jornalistas do programa, fui convidado a cobrir duas conferências em Estocolmo, capital da Suécia, durante a última semana de junho, com um grupo de outros colegas. A Quarta Conferência Visão Zero foi promovida pelo governo local, e especialistas de todo o mundo se reuniram para discutir resultados e alinhar ações para reduzir os sinistros de trânsito. Logo em seguida, aconteceu a primeira reunião da Rede Global de Chefes de Agências Nacionais de Segurança Rodoviária da OMS, na qual participaram representantes de 97 países. Ela funcionou como uma espécie de transferência de conhecimento entre nações.
Conscientizar a imprensa
“Parte do que queremos dos jornalistas é que reconheçam a falha nos sistemas de transportes. Se eles não funcionam bem e as pessoas não vão à escola porque não têm como se locomover, a sociedade vai começar a desmoronar”, evidencia o doutor Nhan Tran, chefe do Departamento de Segurança e Mobilidade da OMS desde 2017. Ele coordena os esforços da OMS para aumentar o conhecimento da imprensa não só sobre os problemas, mas sobretudo para as soluções que podem ser apresentadas na abordagem que a mídia promove sobre o tema.
“Estamos ajudando os jornalistas não só a entender o problema, mas como queremos enfrentá-lo. Governos devem investir em mudanças nos sistemas e a mídia tem o poder de gerar essa demanda na população, incluindo o setor privado e os fabricantes de veículos", explica Than. "Os jornalistas podem redirecionar o foco dessa discussão para os responsáveis pela segurança no trânsito e essa é a razão pela qual decidimos trabalhar com eles”.
De fato, a primeira coisa que jornalistas reaprendem quando recebem letramento em segurança viária é que não devem culpar só as vítimas e que nenhuma morte ou lesão é aceitável. Essa é a síntese do conceito Visão Zero criado pelos suecos, na qual aqueles que planejam, operam e fiscalizam o sistema de locomoção das pessoas têm a última palavra na adoção dos sistema, mas devem ser os primeiros a serem responsabilizados pelas fatalidades. No Brasil, por exemplo, a mídia teve grande papel na conscientização da população para o uso de capacetes por motociclistas, do cinto de segurança, do respeito à faixa de pedestres ou no uso da cadeira especial por crianças e, ainda, nas consequências em se dirigir bêbado.
Jornalismo de soluções
“Um jornalista que sabe falar sobre mobilidade e segurança viária faz muito bem à sociedade onde vive”, atesta Hector Zamarrón, repórter do canal de notícias mexicano Milênio. Veterano de profissão, ele afirma que os colegas de profissão precisam colocar esse tema no centro da discussão de direitos individuais, e lembra que o parlamento do México recentemente aprovou uma lei que colocou a mobilidade e a segurança viária como direitos constitucionais.
Para a jornalista indiana Gunjan Sharma, outra colega presente em Estocolmo, aprender a cobrir a segurança viária sob o prisma do jornalismo de soluções fez bem tanto para ela, que incorporou novas habilidades, quanto para a agência de notícias Press Trust para quem trabalha. “Nossos assinantes perceberam a importância do tema e passaram a solicitar mais reportagens”, revela.
Sharma explica que uma das matérias que produziu depois de conhecer melhor o assunto colocou em evidência a superficialidade com que o governo tratava os dados de mortes de trânsito e provocou mudanças na forma de divulgação da agência. “Nós não fazemos mais matérias sobre índices de acidentes aleatórios, como fazíamos antes. Agora, também queremos mostrar a solução”, diz.
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