Pautas trans se tornaram centrais para o debate político no Brasil. Em outubro, o candidato a vereador mais votado de São Paulo concorreu com uma plataforma que negava direitos a pessoas transgênero. Em janeiro, ele vai assumir o cargo junto com uma mulher trans, a quinta mais votada da cidade.
As eleições marcaram o primeiro pleito no Brasil com cobertura feita por um veículo dedicado a pautas trans com uma equipe composta inteiramente por pessoas trans. Lançada em 2024, a Transmídia produz jornalismo por e para a população trans brasileira, que é estimada em cerca de um milhão de pessoas.
"O primeiro veículo de mídia liderado por jornalistas trans e com foco nessas pautas surgiu durante uma eleição em que a transfobia foi um dos principais assuntos", diz Caê Vatiero, cofundador e diretor institucional da Transmídia, em entrevista à LatAm Journalism Review (LJR). "Isso é muito impactante para nós."
A cobertura da Transmídia focou no combate à desinformação sobre questões trans espalhadas pelos candidatos, sendo realizada no Instagram e no WhatsApp. O veículo também realizou uma capacitação presencial para 100 pessoas, 72 das quais eram trans, para tratar de desinformação eleitoral.
"Qual outra organização jornalística fez uma capacitação de 72 pessoas sobre desinformação", pergunta Vatiero. "Nós chegamos a uma audiência que o jornalismo normalmente deixa passar, o que é crucial porque nós somos profundamente afetados pela desinformação e somos frequentemente o alvo dela."
Unidos pela sobrevivência
As sementes da Transmídia foram semeadas durante encontros semanais online de jornalistas trans que começaram em 2020, em meio à pandemia de COVID-19.
"Nós nos sentimos abandonados, inclusive profissionalmente", explica Vatiero. "No começo, nós nos reunimos para nos conectar e perguntar: onde estão os jornalistas trans do Brasil?"
Durante os encontros, participantes compartilhavam suas experiências no ambiente de trabalho, expressando frustração diante da cobertura inadequada de pautas trans. Na maioria das vezes, os jornalistas enfrentavam desafios para ir além das narrativas superficiais ou estatísticas sobre violência. Inspirado por veículos digitais de nicho no Brasil, o grupo decidiu criar uma plataforma para a cobertura de pautas trans liderada por pessoas trans.
"O nascimento da Transmídia vem da nossa necessidade de sobreviver", diz Valtiero. "Há uma carência significativa de entendimento sobre a comunidade trans, o que traz desafios para nós."
A Transmídia lançou seu site no fim de 2024 com duas reportagens: uma sobre cotas para estudantes trans em universidades e outra sobre como candidatos atacaram crianças trans em suas campanhas.
O site tem quatro editorias: "Acué", termo que significa "dinheiro" em pajubá, linguagem criada pela comunidade LGBTQIA+ brasileira, foca em trabalho, economia e empreendedorismo; "Vital" cobre saúde e bem-estar; "Navalha" aborda política e direitos humanos; e "Esquinas" explora educação, cultura e lazer.
O nome das editorias, diz Vatiero, é uma referência à cultura e memória trans — dois aspectos negligenciados pelo jornalismo tradicional. Ele acredita que há uma "reparação histórica" a ser feita pelo jornalismo em relação à população trans do Brasil.
"O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo há muito tempo", diz Vatiero, citando o monitoramento realizado pela organização TGEU, que há 17 anos ranqueia o Brasil no topo da lista global de homicídios trans. De acordo com ele, a cobertura normalmente foca na violência enfrentada por pessoas trans sem se aprofundar nas raízes e no impacto dessa violência ou tratar de outros aspectos de experiências trans.
"Quando falamos sobre questões trans, não estamos falando somente de gênero. Estamos falando sobre racismo, território, políticas públicas, educação e saúde", diz Valtiero. "As questões trans são transversais."
A Transmídia também publica matérias para ajudar pessoas trans a acessarem seus direitos, ele explica.
"Há coisas que são mundanas no nosso dia a dia. Por exemplo, como tenho acesso a terapia hormonal? Ou como acrescento o meu nome social ao meu título de eleitor?", diz Vatiero. "Quando buscamos por essas informações, descobrimos textos cheios de desinformação ou conteúdo desatualizado. Nós queremos oferecer jornalismo de qualidade sobre isso para que as pessoas possam acessar seus direitos."
Apoio financeiro
Os fundadores da Transmídia incluem Vatiero e mais três pessoas: a designer Agatha Lotus, diretora de projetos do veículo; a escritora e roteirista Hela Santana, diretora de conteúdo; e a jornalista Sanara Santos, diretora de jornalismo.
Os cofundadores mantêm seus trabalhos regulares ao mesmo tempo em que trabalham no desenvolvimento da Transmídia. Vatiero trabalha no Artigo 19 e Santos é uma das diretoras da Énois, organização que apoia coletivos de comunicação em áreas periféricas.
A Transmídia foi selecionada por dois programas de financiamento da Énois. O primeiro permitiu que Vatiero participasse do Tech Camp Belém 2023, organizado pela Énois, o que levou à criação de uma rede nacional de jornalistas que promovem o jornalismo local e diverso. O segundo foi o programa Diversidade nas Redações – Desinformação e Eleições, que financiou a cobertura eleitoral da Transmídia.
Amanda Rahra, fundadora e diretora de operações da Énois, disse à LJR que há uma conexão entre a presença de Santos — mulher negra trans da periferia — na equipe de liderança da Énois e a mudança da organização para tratar das necessidades informacionais da população trans. Rahra também cita a desinformação sobre questões trans durante a campanha eleitoral como uma razão para selecionar a Transmídia para o programa de cobertura eleitoral.
Há 15 anos, quando a Énois foi criada, falar de gênero significava focar em meninas e mulheres, diz Rahra.
"Há 15 anos, as eleições jamais incluiriam esse debate de pautas trans", diz. "Nós vimos a questão crescer. É um assunto que vem sendo germinado. E o fato de que há um coletivo [como a Transmídia] e que a Énois pode apoiar esse coletivo em seu surgimento é muito importante para nós."
Além do financiamento da Énois, a Transmídia foi selecionada para o GNI Startups Lab 2023, programa do Google News Initiative, e participou de um projeto financiado pelo Programa Small Grants 2024 da Embaixada dos EUA.
A equipe trabalha atualmente no planejamento financeiro e de sustentabilidade, decidindo quais projetos priorizar e quais estratégias de arrecadação de recursos adotar em 2025, segundo Vatiero.
Ataques e parcerias
Apesar de recém-lançada, a Transmídia já estabeleceu parcerias com outros veículos nativos digitais interessados em melhorar sua cobertura sobre questões trans.
Juntamente com a revista digital Nonada, a Transmídia investigou ataques contra crianças trans feitos por candidatos às eleições municipais. Anna Ortega, coordenadora de jornalismo da Nonada, disse à LJR que o post do Instagram sobre a matéria recebeu tantos comentários transfóbicos que fez os administradores da página desabilitarem os comentários na publicação.
"Nós percebemos que certos assuntos têm barreiras mesmo na plataforma em si. E a reação, com muitos ataques, valida a questão central da matéria: transfobia", diz.
Ortega diz que a Transmídia pode ajudar organizações jornalísticas no Brasil a entender a importância de alargar seus horizontes sobre questões trans e incluir pessoas trans em suas equipes e como fontes.
"Veículos como a Transmídia garantem que a população trans tenha cobertura consistente em áreas como saúde, educação e cultura — não só ocasionalmente, como a mídia tradicional tende a fazer", diz Ortega.
A revista digital feminista AzMina, fundada em 2015, também é parceira da Transmídia. Os dois veículos planejam produzir e compartilhar conteúdo nas redes sociais, segundo disse à LJR Aymê Brito, gerente de audiência da AzMina. A primeira colaboração foi um post com um artigo de Caê Vasconcelos, colunista da AzMina.
Colaborações com outros veículos são uma forma de chegar a novas audiências, diz Brito. Ela acrescenta que a AzMina cada vez mais sente a necessidade de cobrir questões que são importantes para a população trans. Em 2023, ao dedicarem o mês de março a mulheres trans em uma série de posts em parceria com o Gênero e Número, os dois veículos enfrentaram ataques transfóbicos nas redes sociais. Em resposta, as duas organizações reforçaram seu "comprometimento com o jornalismo contra a transfobia", conforme escreveram em um post compartilhado.
"O jornalismo independente acaba levando a cobertura jornalística para onde ela precisa ir", diz Brito. "O jornalismo independente vem inovando ao dar mais voz para pessoas negras, trazendo perspectiva de classe e raça e focando em questões importantes para a população. Nós temos a responsabilidade de apontar o caminho que o jornalismo brasileiro deve seguir. A Transmídia vai pavimentar o caminho a ser seguido não só para veículos de nicho como também para o jornalismo em geral."
Este artigo foi publicado originalmente na LatAm Journalism Review e republicado na IJNet sob uma licença creative commons.
Foto por Katie Rainbow via Pexels.