Legislação do período ditatorial é usada para perseguir críticos no Brasil

por Kalinka Iaquinto
Sep 28, 2020 em Jornalismo investigativo
Fernando Rodrigues, moderador do painel

O governo brasileiro tem lançado mão de alguns instrumentos antidemocráticos para intimidar oponentes e tentar calar a imprensa. 

Essa é uma das conclusões do painel “Ataques ao Jornalismo justificados pela Lei de Segurança Nacional (LSN)”, com Fernando Rodrigues (Poder 360), Eugênio Bucci (ECA-USP) e Renato Aroeira (chargista), que aconteceu durante o 15° Congresso de Jornalismo Investigativo da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) nos dias 11 e 12 de setembro.

A Lei de Segurança Nacional, de 1983, é um legado da ditadura militar e, até então, era usada pontualmente.

"O apodrecimento do tecido social é causado por todos nós. Somos culpados pelo que está acontecendo”, avalia o chargista Renato Aroeira, ao lembrar que mesmo com a redemocratização o país se recusou e se recusa a lidar com algumas heranças da ditadura. 

Há três meses, Aroeira é alvo de investigação baseada na LSN e da perseguição da militância pró-governo. O artista se viu em meio ao furacão após publicar uma charge associando a figura do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ao nazismo. Em junho, o presidente, descontente com a divulgação dos números de infectados pelo coronavírus, incentivou seus apoiadores a entrarem em hospitais para verificar se, de fato, os leitos estavam ocupados. “O cara deu um tiro no próprio pé: contou para o mundo inteiro que pediu para as pessoas invadirem hospitais”, lembra Aroeira.

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Para Bucci, as atitudes violentas que o país tem assistido são típicas de Estados autoritários, ou que se pretendem assim. Em agosto, por exemplo, grupos conservadores, orquestrados por integrantes do governo federal e seus apoiadores, fizeram vigília em frente de umhospital que realizaria o procedimento de aborto legal em uma criança de dez anos, vítima de estupro. A intenção era impedir a prática.  

“Esse tipo de atitude tem, sim, traços de nazismo. Não podemos minimizar o que está em curso”, alerta o professor e jornalista.

Nesse contexto, o acadêmico lembra que a LSN é um recurso do qual o governo federal tem lançado mão para assegurar uma ordem que lhe seja conveniente e criminalize tudo aquilo que destoe do que defende. 

“[A Lei] É uma espécie de figura de exceção com tinturas de normalidade que destinam um tratamento muito violento contra a dissidência política”, alerta. 

Rodrigues, um dos fundadores da Abraji, acrescenta que o texto da lei diz ainda que ninguém pode caluniar o presidente ou imputar fato ofensivo à reputação do chefe do Executivo nacional. “Como se não bastasse, quando se abre o processo, quem falou não pode apresentar a verdade porque existe a [figura de] exceção da verdade contra o presidente, o que é um absoluto despautério”, critica.

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A exceção da verdade, de acordo com o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) é o “meio de defesa que se faculta ao acusado por crime de calúnia ou injúria para provar o fato atribuído por ele à pessoa que se julga ofendida e o processou por isso. Somente se admite se o ofendido é funcionário público e a ofensa é relativa ao exercício de suas funções.”

“Você prova que aquilo é verdade, mas a lei diz que não interessa”, destaca Bucci.

Uso recorrente da LSN

Apenas nos meses de junho e julho deste ano, além de Aroeira, foram alvos da LSN os jornalistas Ricardo Noblat, que compartilhou a charge, e Hélio Schwartsman, após publicação de artigo intitulado “Por que torço para que Bolsonaro morra”

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, também foi alvo da atual gestão após ter declarado que a presença de militares no ministério da Saúde durante a pandemia fazia com que o Exército se associasse a um “genocídio”. Os servidores desse mesmo ministério, na mesma época, tiveram de assinar um termo de sigilo sob ameaça de serem enquadrados na lei. De acordo com os responsáveis pela Pasta, devido à pandemia, a divulgação de informações e imagens sobre a cúpula poderiam comprometer a soberania nacional.

O próprio presidente Bolsonaro se declarou favorável ao uso da lei. No ano passado, sugeriu: “Temos uma Lei de Segurança Nacional que está aí para ser usada”. Uma reação à fala do ex-presidente Lula que defendia que o Brasil seguisse o exemplo chileno e protestasse nas ruas. Após a demissão de Sérgio Moro, Bolsonaro destacou que o ex-aliado poderia ser alvo da lei já que vazava informações à imprensa.

E não para aí. De acordo com levantamento do Estadão Conteúdo, de janeiro de 2019 a junho  de 2020, a Polícia Federal abriu 30 inquéritos com base na LSN. O maior número dos últimos 20 anos. De janeiro a junho deste ano, foram 11. Entre 2003 e 2010, durante o governo Lula, 29 inquéritos com base nessa lei foram abertos.

“Essa cultura persecutória com base em conceitos retrógrados está realmente enraizada na sociedade brasileira. Vai da esquerda à direita, passando pelo centro”, avalia Rodrigues ao lembrar que em abril, o partido Cidadania pediu que a Procuradoria Geral da República (PGR) incluísse o presidente Bolsonaro em inquérito a partir da LSN. A ação se deu após Bolsonaro participar de atos promovidos pela extrema-direita que pediam o fechamento do Congresso Nacional e do STF.

A transmissão do 15° Congresso de Jornalismo Investigativo da Abraji está disponível até 12 de outubro. Confira a programação aqui, assista a esse e outros painéis na íntegra e acompanhe a cobertura oficial do Projeto Repórter do Futuro.


Kalinka Iaquinto é repórter e coordenadora de comunicação da agência independente de reportagens Eder Content. Twitter: @kikaiaquinto

Imagem: Print de tela, com Fernando Rodrigues, moderador do painel do "Ataques ao Jornalismo justificados pela Lei de Segurança Nacional (LSN)", do 15⁰ Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo da Abraji.