A pandemia de COVID-19 trouxe a reboque uma outra: a da desinformação. Um prato cheio para aqueles que veem na distribuição de notícias falsas e distorcidas um modo de atingir objetivos específicos. No Brasil as discussões em torno do tema têm forte caráter político. O ambiente, já bastante dividido entre a extrema direita e os que se opõem a ela, é propício para a disseminação de mensagens confusas e inverídicas.
“Infelizmente o Brasil é um dos países mais afetados pela indústria da mentira”, avalia Maria José Braga, presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). “O governo brasileiro por questões ideológicas, de projeto de governo mesmo, contribui para que haja excessiva disseminação de informações falsas e fraudulentas para população”, emenda.
A disseminação de falsidades é sustentada por apoiadores do governo, muitos deles figuras com grande apelo popular. Exemplo é a deputada federal Carla Zambelli, do Partido Social Liberal (PSL), que em abril teve uma declaração sua amplamente repercutida. Em entrevista à rádio Bandeirantes a congressista afirmou que “no Ceará, tem caixão sendo enterrado vazio, tem uma foto de uma moça carregando caixão com os dedinhos.” A informação falsa circulava nas redes como meio de desacreditar governos estaduais e municipais.
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“Pessoas que teoricamente não teriam predisposição alguma em acreditar na mensagem A ou B em relação a dados científicos acabam se deixando levar pelas questões políticas, por aqueles que admiram politicamente”, pontua Pedro Burgos, coordenador do Programa de Jornalismo do Insper e ex-bolsista do programa Knight do Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ). Segundo ele, o resultado é uma perda de confiança, seja na imprensa, na ciência ou em políticos que não se alinhem ao presidente. “Isso ajuda essas pessoas a criarem essa desconfiança sobre a mensagem geral de perigo da doença”, diz.
Garoto-propaganda da hidroxicloroquina
“Não tem eficácia comprovada, mas é mais uma pessoa que está dando certo. Eu confio na hidroxicloroquina. E você?”, propagandeou o presidente Jair Bolsonaro em vídeo postado em suas redes sociais no início do mês. Diagnosticado com COVID-19, na ocasião o líder apenas sentia os sintomas da doença e reforçava a ideia que vem defendendo desde o início da pandemia: o fármaco é uma possível solução para o problema. De lá pra cá, uma caixinha do medicamento sempre aparece em seus vídeos.
Essas atitudes levaram o Ministério Público a solicitar ao Tribunal de Contas da União (TCU) que o presidente fosse obrigado a parar de propagandear o uso do medicamento como solução ao tratamento da COVID-19. Em resposta, Bolsonaro disse não recomendar nada, apenas que as pessoas procurassem um médico. Contudo, no domingo, 19 de julho, o presidente saudou apoiadores em manifestação em Brasília erguendo uma caixinha do remédio. O presidente adota posição contrária a da Organização Mundial da Saúde (OMS), a qual suspendeu os estudos com a droga após verificar uma baixa - ou mesmo nula - eficiência do uso na redução de óbitos
Para Wilson Gomes, doutor em filosofia e professor titular da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o governo federal lança mão da distribuição de informações falsas, verdadeiras, parciais e distorcidas misturadas a muita opinião para colocar um propósito particular em prática. “Ele só tem uma política pública: as pessoas têm de voltar a trabalhar porque senão a economia vai quebrar. Então ele trabalha contra todos os projetos e propostas de isolamento social”, destaca.
No final de abril, contrariando recomendações da OMS e do próprio ministério da Saúde, Bolsonaro afirmou em uma de suas lives que o isolamento social tinha sido inútil. “Eu já disse, 70% da população vai ser infectada. Pelo que parece, todo empenho para achatar a curva foi inútil. Qual a consequência colateral disso? Desemprego. O povo quer voltar a trabalhar”. Na mesma linha, o presidente havia criticado governadores e prefeitos ao dizer que, apesar de o Supremo Tribunal Federal (STF) determinar que cabia a esses entes decidir quais medidas seriam adotadas, eles não tinha conseguido nada. “Governadores e prefeitos que tomaram medidas bastante rígidas não achataram a curva”, afirmou. Em nenhum dos casos Bolsonaro apresentou fatos que comprovassem suas falas.
Relação entre mentiras e casos de COVID-19
Com quase de 80 mil vidas perdidas e o posto de segundo lugar mundial em números de casos, é possível afirmar que as informações produzidas pelo governo federal e seus apoiadores têm sua parcela de responsabilidade nesse cenário.
Em abril, um estudo dos economistas Tiago Cavalcanti, da Universidade de Cambridge, Nicolás Ajzenman, e Daniel da Mata, ambos da Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP), mostrou que o comportamento de Bolsonaro está ligado a cerca de 10% dos casos da doença no Brasil. Os pesquisadores apontam ainda que, após determinados atos ou falas do presidente, foi verificado que nas cidades nas quais Bolsonaro teve votação mais expressiva em 2018 o isolamento social caiu entre 10% e 20% em comparação com as demais regiões.
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Outra pesquisa, da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), analisou as informações do aplicativo Eu Fiscalizo e concluiu que as notícias falsas sobre o novo coronavírus invalidam as orientações dadas por órgãos oficiais. A consequência, denota o estudo, é que esses conteúdos levam os cidadãos a tomarem decisões equivocadas em relação à saúde.
“Os resultados nos trazem dados reveladores. Num primeiro momento da pesquisa, a produção das notícias falsas tinham a intenção de minimizar a gravidade da pandemia. Na segunda etapa, observamos que a agenda política era o que impulsionava a produção e disseminação das notícias falsas”, explica Cláudia Galhardi, pesquisadora da instituição e criadora do aplicativo.
Com a terceira fase em curso, Galhardi adianta que o que tem sido observado é uma relação com a crise política. “A falta de comunicação entre o governo federal e estadual -- no momento que deveria haver um diálogo que favorecesse as medidas e ações para conter a propagação da doença -- é o motor que impulsiona a produção das notícias falsas”, destaca.
Kalinka Iaquinto é repórter e coordenadora de comunicação da agência independente de reportagens Eder Content. Twitter: @kikaiaquinto
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