'Jornalismo dos dois lados' no Brasil dá credibilidade a narrativas nocivas

Nov 25, 2020 em Temas especializados
Parede de tijolos de duas cores

A proliferação do “jornalismo de dois lados” (também conhecido como doisladismo) — a ideia de que há dois lados em cada questão que merecem a mesma atenção e tempo no ar — ajudou e ajuda a sustentar atitudes racistas, anticientíficas e antidemocráticas no Brasil.

A abordagem tem sido utilizada especialmente na cobertura dos protestos #VidasNegrasImportam que surgiram em todo o mundo durante o verão americano. Tornou-se prática comum nos dois maiores canais de notícias a cabo no país, CNN Brasil e Globonews.

A CNN Brasil ressuscitou um programa americano chamado "Crossfire" — "O Grande Debate" na versão brasileira — que foi criticado por colocar dois lados de questões polêmicas em debate. O programa brasileiro contrata especialistas para enfrentar debatedores cujas únicas credenciais são o apoio ao governo de extrema direita do presidente Jair Bolsonaro. Em episódios anteriores, "O Grande Debate" discutiu a validade das regras de isolamento social da Organização Mundial de Saúde e o retorno das partidas de futebol durante a pandemia.

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Em junho, a CNN Brasil entrevistou Eduardo Fauzi, um integralista brasileiro — uma forma de fascismo — sobre os protestos antifascista e Black Lives Matter. Fauzi fugiu para a Rússia após ser acusado de terrorismo por lançar um coquetel molotov na sede do grupo de humor Porta dos Fundos.

“O que a CNN faz no Brasil é um absurdo”, disse Cecília Oliveira, jornalista do The Intercept Brasil. “Não só coloca pessoas sem a menor formação profissional para debater, mas até apresentou como debatedor um membro do movimento Nas Ruas, [Tomé Abduch], que organizou manifestações antidemocráticas pedindo o fechamento do Supremo Tribunal Federal. Isso não significa aceitar pontos de vista divergentes: é ser antidemocrático.”

A CNN Brasil também contratou o jornalista William Waack, que foi demitido como principal apresentador da Rede Globo por fazer comentários racistas. Um entrevistado chegou a questionar Waack sobre sua presença contínua na cobertura dos protestos pela CNN Brasil.

Fabiana Moraes, jornalista e professora de comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, compartilha essas preocupações sobre a cobertura da CNN Brasil. "Essa ideia de objetividade jornalística é usada para defender coisas como colocar um defensor da Terra plana ou um defensor do autoritarismo para debater como se fossem o 'outro lado' — como se fossem perspectivas equivalentes que pudessem ter validade, e fossem democráticas e pudessem estabelecer uma conversa", disse ela.

A CNN Brasil cobriu tanto os protestos antifascistas contra Bolsonaro quanto os protestos em apoio ao presidente, sem destacar suficientemente a natureza antidemocrática deste último. Por exemplo, manifestantes pró-Bolsonaro pediram o fechamento do Congresso e até mesmo um golpe militar. Ao cobrir os dois da mesma forma, o canal sinaliza que as lutas pela democracia e pelos direitos humanos têm peso igual aos esforços para promover o fascismo.

A CNN Brasil também ajudou a elevar as opiniões não científicas sobre as medidas de segurança da COVID-19 a um nível de igualdade com a orientação de especialistas internacionais, como a Organização Mundial da Saúde.

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“A divulgação de opiniões não pode ser feita de forma acrítica, senão assume o papel de um marketing de ódio”, disse Leonardo Sakamoto, professor de jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. “Aqueles que apenas reproduzem o discurso de ódio dos entrevistados sem a devida consideração não estão sendo 'técnicos’ ou ‘neutros', mas se tornando instrumentos de propagação ideológica desses grupos.”

A prática do “jornalismo dos dois lados” não se limita à cobertura da CNN Brasil. A reportagem da Globonews, por exemplo, tem procurado distinguir entre diferentes elementos do governo Bolsonaro, como as políticas econômicas impulsionadas pelo ministro da economia, Paulo Guedes. Como a economia representa um aspecto crítico de qualquer administração, isso ajudou a legitimar a administração não democrática como um todo. É importante adicionar o contexto necessário para leitores e telespectadores ao conduzir tais reportagens para evitar esse problema.

A rede, assim como jornais impressos como a Folha de S. Paulo e O Globo, também cedeu espaço para ex-assessores do Bolsonaro, como o ex-juiz e ministro da justiça Sérgio Moro, retratando-os como centristas. Os críticos especularam que este é um esforço para ajudar a impulsionar a imagem de Moro para uma possível candidatura à presidência no futuro.

Oferecer cobertura igual para os dois lados de uma questão cria uma falsa equivalência — que ambos os lados são igualmente válidos, disse Leandro Demori, jornalista e diretor executivo do The Intercept Brasil. Embora especialistas concordem que o governo de Bolsonaro é fascista (ou pior), permitir que os membros do governo preguem seus pontos de vista é mergulhar de cabeça na abordagem prejudicial do "jornalismo de dois lados". Como Eric Alterman observou em um artigo para o The Nation: quando um lado é fascismo, você não tem que publicar ou dar publicidade a ele.

“Nem tudo pode ser falado impunemente”, disse ele. “O jornalismo é um mediador da sociedade e com esse absurdo de neutralidade, colocamos no ar pessoas defendendo crimes como o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal”, explicou Demori.

A abordagem de “dois lados” efetivamente perpetuou a história da mídia brasileira com o racismo. Após a abolição da escravatura no Brasil em 1888 não era incomum encontrar debates visivelmente racistas nos principais jornais do país. “A imprensa brasileira começou a se instalar na segunda metade do século 19, se expandindo por meio do trabalho de ex-escravistas”, disse Moraes.

A abordagem de hoje é mais evasiva, mas ainda assim prejudicial. Em um país de maioria negra e mestiça, o legado de ex-proprietários de escravos é um problema sério. Além de reportagens que muitas vezes deixam de abordar questões que afetam as comunidades negras, isso torna suas agendas e necessidades invisíveis, ao mesmo tempo que garante um amplo espaço para o racismo se manifestar. Sem mencionar os negadores da ciência e também aqueles que se opõem claramente à democracia.

“A Província de São Paulo — hoje Estado de São Paulo — por exemplo, era um jornal que tinha esse discurso fortemente racista baseado até no racismo científico”, disse Moraes. “Acho que muito desse racismo que fundou a imprensa naquela época se sustenta hoje de uma forma [que é] mais delicada, mas que continua presente.”


Raphael Tsavkko Garcia é um jornalista freelance brasileiro.

Imagem sob licença CC no Unsplash via Marl Clevenger