A importância de acervos históricos para a investigação jornalística

Sep 24, 2023 em Jornalismo investigativo
Biblioteca

Nos anos 1990, o então repórter Nilson Mariano viajou para o Paraguai para consultar o que ficou conhecido como o “arquivo do terror”, que continha  documentos sobre a Operação Condor, pacto entre as ditaduras militares da Argentina, Brasil, Paraguai, Chile e Uruguai para capturar adversários políticos além das fronteiras entre os países. Até a descoberta dos arquivos, os governos dos respectivos países sempre negavam a existência dessa operação. 

“Os próprios familiares dos mortos e desaparecidos não tinham como provar suas denúncias. Os documentos mudaram a situação. Provaram que houve um crime de lesa-humanidade, um genocídio por razões políticas", explica Mariano. "Possibilitaram que os acusados fossem julgados. Incentivaram que outros países, especialmente Chile e Argentina, também buscassem seus arquivos secretos”, explica. 

Em uma época na qual o processo de trabalho jornalístico é cada vez mais focado no digital, é importante lembrar que arquivos físicos e museus locais também podem ser fundamentais para reportagens e apurações. Muitas das matérias que são realizadas a partir desse segmento são de cunho histórico, mas isso não quer dizer que elas não possam refletir também aspectos atuais.

Notícia com base na história

A jornalista Clarissa Pacheco conta que quando trabalhou no Jornal Correio, em Salvador, utilizava bastante acervos. “Em geral, eu usava em matérias que traziam um pouco da história da cidade ou de episódios passados", diz ela. "Mas, com o tempo, eu comecei a perceber que eles poderiam servir como aquela fonte que eu não posso mais entrevistar. Por exemplo, dificilmente eu conseguiria falar com alguém que testemunhou o plantio das árvores mais antigas de Salvador e que ainda estão de pé, mas eu poderia encontrar registros delas em postais antigos ou jornais do início do início do século XX”, diz. Pacheco conta que em alguns casos a própria edificação em si também é fonte de informação. Ela fez uma matéria sobre a reativação de 16 sinos da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, em Salvador, e a própria igreja em sua estrutura contava a história.  

Recentemente, Pacheco buscou acervos no combate à desinformação, dentro do Projeto Comprova. “Era sobre um post que exaltava o governo de Jair Bolsonaro por conta da obra da transposição do rio São Francisco, ignorando que além de ser uma obra de diversas gestões, era um projeto do século XIX, encomendado por Dom Pedro II, mas que nunca saiu do papel por conta das limitações técnicas da época”, diz. Na matéria de checagem então há um intertítulo que fala sobre a ideia de Dom Pedro, os mapas e relatórios de exploração do São Francisco encomendados a partir de 1840, com links para os documentos, mapas e relatórios encontrados na Biblioteca Nacional e na Brasiliana Iconográfica.  

Mariano considera ainda que é muito importante jornalistas e pesquisadores continuarem a luta pela abertura de arquivos considerados secretos. “Governos não deveriam bloquear arquivos sob a alegação de que são segredos de Estado. Os cidadãos têm o direito de saber. E a mídia tem a obrigação de revelar”, aponta.

Digitalização como aliada

Uma preocupação é a digitalização dos acervos históricos. O Instituto Moreira Salles (IMS), no Rio de Janeiro, quer ter todo seu acervo catalogado, descrito e acessível na internet. “Facilita a pesquisa à distância e poupa o tempo, além de contribuir para a preservação do documento, evitando seu manuseio direto", explica a coordenadora de literatura do IMS, Rachel Valença. "Mas ainda estamos distantes desse ideal, pois esses passos de tratamento requerem muito tempo e muito mais braços”. O IMS contém um vasto acervo da cultura brasileira, com documentos e materiais importantes de grandes intelectuais e escritores.  

Pacheco diz que foi graças a acervos digitalizados que ela pode concluir muitas de suas reportagens durante a pandemia. “E como historiadora, eu posso dizer que boa parte da minha pesquisa acadêmica também não existiria, porque eu uso documentos digitalizados, cujos originais estão em Portugal, em Angola ou no Vaticano", destaca ela. "Sei que o processo de digitalização não é tão simples, nem barato, mas isso se resolve com vontade política, priorizando o que precisa ser feito”.

Dicas para a pesquisa

- Passe a considerar os acervos como fontes, procure em suas cidades arquivos públicos locais que podem ser boas dicas de pautas. Os acervos físicos, geralmente, têm catálogos online, onde é possível ter uma ideia também do que existe lá.

- Vários acervos têm materiais digitalizados, como o da Hemeroteca Digital, onde é possível personalizar a busca por data, jornal e termos.

- O tipo de reportagem é que irá direcionar a apuração. Seja cuidadoso na pesquisa, analise a origem do documento e se certifique de sua autenticidade. Por isso, o melhor, sempre, é variar as fontes e cotejá-las entre si.


Foto: Canva.