Como foram revelados os gastos do ex-presidente do Brasil 

por Taís Seibt e Luiz Fernando Toledo
Mar 5, 2023 em Jornalismo investigativo
Arquivos notas fiscais

O que um presidente da República come? Quanto custam suas viagens? Qual presidente gastou mais? Perguntas sobre gastos com cartão corporativo de ex-presidentes chamaram a atenção dos brasileiros neste início de ano, deixando a impressão de que os chefes do Executivo esbanjam com banquetes para si e seus familiares com dinheiro público. Bolsonaro não foi a primeira vítima, Lula, Dilma e Temer também foram alvos de publicações sobre o tema. Todas dividem um problema em comum: a total falta de transparência e esclarecimento sobre como são feitos esses gastos, quem pode se beneficiar, por qual motivo e em quais situações. 

Informação graças a Lei de Acesso

A Fiquem Sabendo (FS), agência de dados especializada na Lei de Acesso à Informação (LAI), decidiu se debruçar sobre o tema. Em 2019, a agência fez a primeira publicação de gastos do cartão corporativo de todos os ex-presidentes entre 2003 e 2018. Os dados mostrados eram bastante limitados e não continham notas fiscais das despesas. Em 2023, os jornalistas da FS foram mais fundo e conseguiram também o acesso às notas fiscais desses gastos, que estão sendo escaneadas e divulgadas ao público aos poucos - cada cópia precisa passar pelo aval do órgão público que armazena os documentos, para evitar a exposição de dados pessoais e/ou sigilosos.

Para garantir a abertura dos dados logo após o término do mandato de Bolsonaro, como prevê o artigo 24 da LAI (que, em resumo, diz que o sigilo de informações que podem afetar a segurança do presidente cai após o fim do mandato), a estratégia foi registrar um pedido de informação ainda em dezembro de 2022. Desde então, o e-mail de cadastro no FalaBR, canal de registro de pedidos do governo federal, era monitorado diariamente até que, no dia 11 de janeiro, chegou a resposta com os dados iniciais. “Fechamos uma edição da newsletter tarde da noite para que chegasse de manhã cedo na caixa de entrada de nossos assinantes, a maioria jornalistas, que poderiam colocar o assunto na pauta do dia”, conta o editor da newsletter e cofundador da Fiquem Sabendo, Luiz Fernando Toledo.

Repercussão em escala

O jornal O Estado de S. Paulo, que também tentava ter acesso aos documentos, fez uma parceria com a agência para ajudar a escanear as notas e publicar reportagens no dia seguinte. A repercussão aconteceu em poucas horas e logo o material estava nas manchetes de todos os portais de notícias e era um dos principais assuntos do dia no Twitter, perdendo apenas para o Big Brother Brasil. Dezenas de políticos se manifestaram a favor e contra os gastos, alguns comparando com outros ex-presidentes e outros criticando o que consideravam compras abusivas.

“Foi um momento importante para refletirmos sobre nosso posicionamento no debate. Somos uma agência de dados especializada na LAI. Nossa missão é revelar dados e torná-los acessíveis para quem queira consultar. Não fazemos análise, não somos uma agência de notícias, nem de checagem", comenta a diretora de operações da FS, Taís Seibt. "Divulgamos dados originais, direto da fonte oficial. Aos poucos, fomos nos reacomodando no nosso papel, sem deixar de cobrar as devidas explicações do governo”.


Enquanto tudo isso acontecia, já se iniciava uma nova mobilização para dar o próximo passo: acessar e digitalizar as notas fiscais das compras. Milhares de documentos em processos físicos em Brasília. O jornalista Alexandre Facciolla foi contratado pela FS para a operação in loco, no Pavilhão de Metas do Planalto. O Estadão deu sequência à parceria, com jornalistas no acervo. Um dia inteiro de trabalho manual, abrindo processos e fotografando notas, e pouco mais de uma centena de notas havia sido digitalizada. Era uma missão impossível. A agência decidiu comprar um scanner e contratar mais pessoas, chegando a 2,6 mil documentos digitalizados ao final de uma semana, cerca de 20% de um total estimado de 13 mil notas somente do governo Bolsonaro. 

Publicação das notas fiscais

Os documentos digitalizados foram carregados em uma coleção na plataforma Google Pinpoint durante o final de semana, passando por uma triagem de Luiz Fernando para garantir que não haveria documentos com informação pessoal ou sigilosa. Outra edição da newsletter foi preparada em regime de plantão, garantindo a liberação dos dados na segunda-feira seguinte. Desta vez, a equipe deixou posts agendados nas redes para a largada do dia e tomou conta das interações desde cedo. “Buscamos esclarecer os usuários sobre o papel da FS nesse processo e sensibilizar sobre os custos extras que assumimos para garantir acesso a esses dados, além de apresentar a agência aos nossos novos seguidores, que não paravam de chegar”, descreve a assistente de comunicação da FS, Beatriz Cintra, que gerenciou a repercussão nas redes.

O impacto da abertura de gastos no cartão corporativo pela Fiquem Sabendo mostra a importância do uso de ferramentas de transparência pelo jornalismo, em especial a vigilância sobre o cumprimento da Lei de Acesso à Informação (LAI). Quando o governo deixou de disponibilizar para consulta pública, de forma verdadeiramente acessível a qualquer cidadão, os detalhes sobre compras no cartão, por não ter um arquivo com as notas digitalizadas, a agência foi lá com scanner na mão para colocar os dados à disposição de todos. Inúmeras reportagens foram produzidas nos dias seguintes e até mesmo investigações foram abertas nos órgãos competentes.

A relação com os servidores que vigiavam o trabalho dos jornalistas no arquivo mudou diante da visibilidade do caso. “Quando começamos, os comentários eram sobre como a digitalização que estamos fazendo deveria agilizar a liberação digital, pela CGU (Controladoria-Geral da União), de dados pormenorizados sobre os gastos através do Portal da Transparência. Após a primeira leva de reportagens, passaram a exigir a checagem prévia das notas a serem digitalizadas por um servidor, e informações consideradas sensíveis eram ocultadas com hidrocor preto em uma cópia do documento”, conta Alexandre.

Próximos passos 

No novo formato, a velocidade de digitalização reduziu. “Decidimos bancar a operação pela relevância histórica e jurídica dos dados. Notas fiscais perdem a legibilidade com a ação do tempo, sem ter os arquivos digitalizados, perde-se o registro e a possibilidade de apurar qualquer suspeita de uso indevido do cartão corporativo, por exemplo”, observa Taís. A coleção de notas seguirá sendo atualizada com novos arquivos enquanto durar a operação, mas o tempo e a quantidade exata de notas que poderá ser disponibilizada ainda é incerto. 

A divulgação de notas fiscais digitalizadas por transparência ativa é uma das sugestões do documento que a diretora executiva da Fiquem Sabendo, Maria Vitória Ramos, entregou à  equipe de transição do governo Lula no ano passado por um Brasil mais transparente. Frente à força dos questionamentos sobre o cartão nas mídias, o governo abriu uma consulta pública sobre novo decreto para regramento do uso desse dispositivo. Enquanto novas medidas não chegam, os jornalistas brasileiros têm a LAI a seu favor para continuar fazendo pedidos por dados que são públicos, mas não são publicados. 


Foto: Fiquem Sabendo/Divulgação.