A inteligência artificial está remodelando vários setores, incluindo o jornalismo. No mês em que se celebra o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, é importante considerar como a tecnologia pode impactá-la. É um cenário complexo. A IA e a IA generativa podem ser ferramentas poderosas para apoiar as redações, mas também podem ser usadas contra elas.
No mundo todo, a liberdade de imprensa encontra-se em "situação difícil", segundo classificação do mais recente Índice de Liberdade de Imprensa da Repórteres Sem Fronteiras. Esta é a primeira vez que a categoria foi usada para classificar o estado geral da liberdade de mídia no mundo todo.

Neste contexto, a ONU observa que a "IA traz novos riscos". "Ela pode ser usada para espalhar informações falsas ou enganosas" e "aumentar o discurso de ódio online, além de servir de apoio a novos tipos de censura".
A IA também pode ser usada para filtrar os pontos de vista aos quais as audiências são expostas, bem como monitorar jornalistas e cidadãos. Além disso, "há preocupações crescentes de que a IA torne a mídia global muito semelhante", reflete a ONU, ao considerar que o conteúdo orientado por IA pode homogeneizar o jornalismo e, potencialmente, "excluir veículos menores".
Enfrentar esses desafios é uma tarefa crucial para as redações, jornalistas e defensores da mídia no mundo todo, principalmente em uma época em que a liberdade de imprensa está sob crescente ameaça. Ao encarar esse cenário, a IA pode ser usada como uma reação a esses desafios. Confira, a seguir, um resumo dos dois lados dessa dinâmica.
4 ameaças da IA à liberdade da mídia
(1) Vigilância e perseguição
As tecnologias de IA estão sendo cada vez mais usadas para monitorar e intimidar jornalistas. De acordo com o Journal of Democracy, "bots e algoritmos de IA bombardeiam ativistas, jornalistas e figuras de oposição com assédio, trollagem e informações falsas".
Governos e outras entidades usam sistemas de reconhecimento facial, análise preditiva e outras ferramentas de vigilância alimentadas por IA para rastrear a movimentação de repórteres, monitorar atividades online e reprimir a dissidência e o jornalismo crítico.
Essas táticas não são novas. Já em 2021, pelo menos 180 jornalistas no mundo todo eram monitorados pelo Pegasus, um software espião. Mas cada onda de IA permite que essa agressão antijornalística se intensifique.
A ascensão da vigilância alimentada por IA aumenta os riscos enfrentados por repórteres e suas fontes, principalmente aqueles que cobrem temas investigativos. Isso pode ter um efeito inibidor sobre algumas pautas, como corrupção, violação de direitos humanos e crime organizado, os quais os jornalistas deveriam poder cobrir sem medo de represálias.
(2) Deepfakes e desinformação
A disseminação de desinformação por meio de deepfakes gerados por IA é outra área que suscita preocupações há algum tempo. E elas só aumentam à medida que a tecnologia que torna possível a manipulação ou fabricação de vídeos, imagens e áudio melhora.
Embora alguns desses primeiros esforços tenham sido rapidamente desmascarados, eles mostraram como a IA pode ser usada para espalhar desinformação. A velocidade com que a tecnologia evolui, incorporando memes, áudios falsos, declarações de celebridades falsificadas por IA, entre outros, torna mais difícil do que nunca para jornalistas e suas audiências o discernimento entre fato e ficção.
Há ainda, para os jornalistas, o desafio crescente de conseguir verificar esses conteúdos falsos. E espalhar desinformação, mesmo que inadvertidamente, pode enfraquecer a confiança no jornalismo. Além disso, jornalistas também podem se tornar vítimas de deepfakes e impostores, tornando mais importante do que nunca a necessidade de proteger suas identidades e reputações.
(3) Censura automatizada
Regimes autoritários estão cada vez mais empregando ferramentas de moderação baseadas em IA para reprimir vozes independentes online. Os algoritmos podem detectar e remover rapidamente conteúdo político sensível. O "Grande Firewall" da China é o exemplo mais destacado, mas outros países também estão seguindo o exemplo.
A organização Freedom House observa que a IA pode viabilizar esse tipo de atividade "em velocidade e escala que seriam impossíveis para censores humanos ou para métodos técnicos menos sofisticados". Além disso, é possível usar essa estratégia de um modo que seja difícil de se detectar, "minimizando a reação da opinião pública e reduzindo o custo político para aqueles que estão no poder".
Tudo isso pode enfraquecer o jornalismo independente e o debate público, tornando cada vez mais difícil o compartilhamento de conteúdos que governos não querem ver online.
(4) Pressões econômicas e corte de empregos
Além da ação direta contra jornalistas e redações, a IA está ameaçando indiretamente a liberdade de imprensa ao reformular a dinâmica econômica do jornalismo. Redações, principalmente aquelas que já operam sob limitação financeira, estão usando cada vez mais ferramentas de IA para automatizar e acelerar tarefas como geração, edição e distribuição de conteúdo. Além disso, o aumento das capacidades da IA pode gerar cortes de empregos e o esvaziamento do jornalismo original.
Algumas audiências parecem estar atentas a essa ameaça. Uma pesquisa de 2024 do Pew Research Center revelou que 59% dos americanos dizem que a IA vai resultar em menos empregos para jornalistas nas próximas duas décadas, com opiniões variadas sobre o que isso significa para o tipo de notícia a ser produzida e acessada.
Se a IA acelerar a mudança do jornalismo original em direção ao conteúdo produzido em massa, uma consequência de longo prazo será não só a perda de vagas nas redações, mas também um debate público reduzido, ambos problemas com os quais deveríamos nos preocupar.
Como a IA pode ajudar a proteger e promover a liberdade de imprensa
Apesar dessas ameaças bastante reais, nem tudo está perdido. A IA também é uma ferramenta promissora que pode fortalecer o jornalismo e ajudar a defender a liberdade de imprensa.
(1) Identificação e combate à desinformação
Embora jornalistas devam ter cuidado com a dependência excessiva de ferramentas de IA, a tecnologia pode ajudar nos esforços para detectar deepfakes e desinformação, bem como melhorar esforços mais amplos de verificação de fatos.
Essas ferramentas podem não ser tão eficazes quando usadas com idiomas menos falados atualmente, mas isso pode mudar com a evolução da tecnologia. Além disso, à medida que a influência da IA na formulação, criação e disseminação da desinformação continua, nós vamos mais e mais precisar acrescentar a IA ao nosso kit de ferramentas para combater o problema.
Produtos como o AI Safety Suite do NewsGuard contam com a "ajuda de processos proprietários de aprendizado de máquina para identificar alegações falsas que se espalham em tempo real no mundo todo". Podemos esperar uma maior integração desse tipo de serviço de IA no fluxo de trabalho das redações. Conforme disse a jornalista Karen Rebelo ao Nieman Lab no ano passado, dada a crescente complexidade do nosso ecossistema de informação, "você não pode contar mais só com as habilidades humanas sendo um verificador de fatos".
(2) Proteção da segurança e identidade dos jornalistas
A IA também está sendo usada por alguns veículos para aprimorar a segurança digital. Na Venezuela, veículos independentes passaram a proteger a identidade de seus jornalistas através da criação de um programa que usa âncoras gerados por IA.

Paralelamente, no Festival Internacional de Jornalismo, foi anunciada a iniciativa JESS, ferramenta de IA que vai coletar dicas de segurança de diferentes veículos e ONGs, e distribuí-las para redações que talvez não tenham acesso a esse nível de orientação. A ferramenta deve ser lançada globalmente no ano que vem, com disponibilidade em diferentes idiomas.
Esses exemplos rápidos mostram como a IA, quando usada com criatividade e responsabilidade, pode oferecer novas formas de proteção para jornalistas que trabalham sob ameaça. Podemos esperar ver mais avanços nessa área à medida que redações e ONGs avaliam como a IA pode ser uma amiga e também uma inimiga em potencial.
(3) Destaque para pautas com pouca visibilidade
A IA pode ajudar jornalistas a descobrir pautas escondidas em documentos e dados públicos ou por meio de alertas que são enviados quando algo de extraordinário acontece. O pesquisador britânico Paul Bradshaw tem vários exemplos da IA sendo usada nesse sentido em seu Online Journalism Blog.
A IA pode não só ajudar a identificar padrões e anomalias como também pode ajudar a garantir que a cobertura desses temas alcance uma audiência o maior possível. A habilidade da IA generativa de criar resumos em áudio ou traduzir conteúdo em diferentes idiomas são só duas formas pelas quais as matérias podem ser distribuídas de novas maneiras para pessoas que de outro modo não as consumiriam.
Coletivamente, os esforços para descobrir pautas importantes e fazê-las chegar ao máximo de pessoas possível serão fundamentais para a saúde do jornalismo. A IA pode, portanto, ajudar tanto no impacto quanto na distribuição do jornalismo, dois aspectos que são fundamentais para o seu futuro.
De olho no futuro
Tendo em vista o potencial da IA tanto de prejudicar quanto de ajudar o jornalismo, é essencial que mantenhamos um diálogo ativo sobre os prós e contras dessa tecnologia que muda tão rápido. Embora a IA ofereça ferramentas para eficiência e novos produtos, ela não é um remédio para problemas como o hábito de evitar notícias, baixos níveis de confiança ou as dificuldades financeiras do jornalismo.
Do mesmo modo, embora ela traga desafios para o trabalho jornalístico e para o modo como ele é feito, alguns desses problemas podem ser mitigados. Para tanto, é essencial que entendamos como a IA funciona, como ela está evoluindo e as implicações para o jornalismo. As redações e os jornalistas precisam ter acesso a capacitação, políticas e pesquisas adequadas.
O futuro da liberdade de mídia na era da IA vai ser moldado por escolhas feitas por governos, empresas de tecnologia, sociedade civil e por jornalistas e organizações de mídia. O compartilhamento de conhecimento será essencial. Assim como o serão as vozes que seguirão defendendo a liberdade de mídia numa época em que a IA está moldando e redefinindo esse aspecto crítico e o mundo ao nosso redor.
Estou ansioso para testemunhar e, potencialmente, fazer parte dessa conversa.
Foto por Igor Omilaev via Unsplash.