Empreendendo no jornalismo, parte 3: A experiência do Alma Preta

Jan 18, 2021 em Sustentabilidade da mídia
Logo do Alma Preta

Para começar o ano inspirando quem está trabalhando pelo próprio negócio na área, conversamos com diferentes empreendimentos jornalísticos de sucesso no Brasil durante a pandemia. Neste terceiro artigo da nossa série de quatro partes focamos no Alma Preta. Leia o primeiro artigo sobre o jornal Plural de Curitiba, o segundo artigo sobre a Agência Tatu e o terceiro artigo sobre o Núcleo.

 

Criado em 2015 por um grupo de jovens comunicadores da UNESP, o Alma Preta é uma agência de jornalismo especializado na temática racial do Brasil. Segundo Pedro Borges, um dos cofundadores, o Alma Preta segue uma estrutura de agência de notícias. “Temos uma equipe com mais de 13 pessoas, e estamos com a perspectiva de até março ou abril de 2021 em torno de 18 pessoas”, diz. 

Trata-se de uma equipe composta não só por jornalistas. Há uma separação por departamentos de comunicação, marketing, comercial e uma área administrativa consolidada. O Alma Preta também foi um dos selecionados, em 2020, para o programa Startup Lab do Google.

IJNet: O que vocês apontam como as principais estratégias para o crescimento do Alma Preta? E como foi o processo do Startup Lab do Google e o que esperam sair de lições?

Pedro Borges: O Alma Preta enquanto Agência precisa crescer do ponto de vista editorial e também do administrativo. Então, nós temos estratégias para que a nossa audiência cresça não só do ponto de vista quantitativo. O momento que a gente vive hoje no jornalismo, principalmente da mídia independente, não trabalha somente com a noção de quantidade de acesso, mas uma noção de credibilidade — e nesse quesito a gente tem bastante. 

Então, a gente quer fortalecer a nossa credibilidade com reportagens de mais profundidade, e que isso se torne mais frequente na rotina do Alma Preta, e a produção de conteúdo que de alguma maneira também aumente a nossa audiência. Agora, existe também uma estratégia do ponto de vista do mercado do Alma Preta para fortalecer e diversificar ao máximo o modelo de negócios do grupo para que esse crescimento editorial seja sustentado a partir de um crescimento comercial. 

[Leia mais: Empreendendo no jornalismo, parte 2: Agência Tatu]

 

Sobre o Lab do Google, a gente espera um fortalecimento do Alma Preta, do ponto de vista de entrega do jornalismo enquanto produto. De melhora da experiência do usuário no nosso site, de uma melhor definição do nosso público, de um melhor diálogo com o nosso público. Todos esses pontos são fundamentais para o fortalecimento do jornalismo de um ponto de vista institucional. A expectativa tem sido muito boa e os encontros até o momento tem sido bem ricos e já geraram um crescimento muito grande para o Alma Preta. Tenho certeza que até o final de todo o processo, a gente vai sair muito fortalecido, muito mais do que entramos e com uma noção do que a gente vai entregar para o nosso público muito mais nítida para gente que produz, que participa e que constrói. 

Como vocês avaliam o ecossistema do jornalismo independente brasileiro? E como o jornalismo independente trabalha com a questão dos direitos humanos e da população negra?

Hoje pode-se falar da existência de um ecossistema consolidado de jornalismo independente no Brasil. Algo que já é uma tradição em outros países, inclusive aqui na América Latina. Por exemplo, a Argentina e El Salvador têm produções de jornalismo independente já há anos. E o Brasil começou essa experiência recentemente, mas todas elas ganharam muita força. Então, elas têm, inclusive, idades parecidas, muitas delas estão com cinco ou seis anos, ou até um pouco menos, como é o caso do próprio Alma Preta. 

Então, acho que a gente tem um ecossistema fortalecido, mas um ecossistema que de alguma maneira precisa tomar cuidado para não reproduzir aquilo que o âmbito de uma imprensa corporativa tem. A de um jornalismo cuja esfera pública está extremamente ligado aos interesses do grande capital, e que é o jornalismo que de alguma maneira reflete os postos de trabalho da sociedade brasileira, com uma pequena diversidade racial, com a ausência de pessoas negras em posições de liderança, e mais importante do que isso: uma falta de compromisso editorial com o enfrentamento ao racismo enquanto elemento que estrutura a sociedade brasileira. Esse é um ponto de atenção, e isso se reflete nessa cobertura. Acho que a mídia independente de uma maneira geral tem um compromisso muito grande com os direitos humanos. Mas acredito que a gente precisa trazer mais para a centralidade e entender que raça é o elemento que estrutura a sociedade brasileira.

Quais são as principais conquistas do Alma Preta ao longo desse tempo de existência?

De alguma maneira o Alma Preta já começou a pautar a sociedade. Não só o Alma Preta, mas a mídia negra de uma maneira geral. Então, atualmente pode-se perceber que esses canais de mídia negra, e aí incluo o Alma Preta, tem uma grande relevância nas redes sociais e também na esfera pública, e que influenciam o trabalho da imprensa corporativa. Esse é um legado bem interessante.

Acho que a gente está em um caminho também no sentido de fortalecer aquilo que está sendo mais colocado pelo movimento negro nesse momento, que é a centralidade do racismo na discussão econômica, política da sociedade brasileira. E o esfacelamento da noção do mito da democracia racial. Eu acho que, de alguma maneira, o Alma Preta deixa esse legado e no que tange a comunidade negra e ao jornalismo, o Alma Preta também mostra, como outras experiências já mostraram antes de nós, a possibilidade de você construir um jornalismo comprometido com as causas sociais e étnico-raciais, com o enfrentamento a desigualdades, e com um modelo de negócio que seja sustentável e que permita um trabalho com qualidade e profissional por parte dos jornalistas e dos trabalhadores.

[Leia mais: Iniciativas brasileiras buscam maior representatividade étnico-racial no jornalismo]

Quais conselhos e lições vocês dariam para quem deseja empreender no jornalismo?

O primeiro tópico que eu coloco é que é preciso acabar com a ideia de glamourização. O empreendedorismo traz essa ideia, assim como a noção de meritocracia. Acredito que exista uma dimensão muito mais coletiva do que individual. O jornalismo hoje é possível de existir, de acontecer, porque há um avanço da comunidade negra no debate racial da sociedade brasileira. Então, a pessoa precisa fazer uma leitura da sociedade brasileira, desse momento histórico, para que se possa empreender no jornalismo. Mas acredito que a gente vive em um momento oportuno para isso, principalmente em se tratando de mídias independentes. 

E acho que as pessoas podem sim sonhar, mas que as pessoas também não percam como norte a beleza que é o trabalho enquanto jornalista CLT [quando o profissional é contratado pela empresa em regime regulamentado pelas leis trabalhistas], ou jornalista pejota contratada por uma empresa, que de alguma maneira o pague corretamente, que respeite a jornada de trabalho, e que possibilite uma experiência gostosa e profissional. Então, as lições existem, mas também acho que existe vida fora dessa noção de empreendedorismo, existe espaço para a contratação dentro da mídia independente, e dentro de outros espaços. Acho, inclusive, que esse cenário da mídia independente de alguma maneira também influenciou, de modo positivo, a imprensa corporativa. 


Rafael Gloria é jornalista, mestre em comunicação, editor-fundador do coletivo de jornalismo cultural Nonada - Jornalismo Travessia e sócio da Agência Riobaldo.

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