Empreendedorismo não é prioridade em faculdades de jornalismo. E agora?

por Patricio Contreras
Sep 23, 2019 em Sustentabilidade da mídia
Pessoa andando pelo campus

Uma década depois de deixar um emprego de mídia tradicional em Caracas para retornar à sua cidade natal, Ciudad Bolivar, e ensinar na universidade local, a jornalista venezuelana Albor Rodriguez usou uma campanha de financiamento coletivo para iniciar seu próprio meio de notícias digital.

O lançamento de La Vida de Nos em 2016 não só renovou Rodriguez como jornalista. Também a inspirou a transformar o workshop de reportagem que ministrava na Universidade Católica Andrés Bello em uma aula de empreendedorismo de mídia, onde prioriza discussões e análises sobre a transformação da indústria da mídia.

“Meu modo de pensar, justamente porque sou da mídia tradicional e conhecia a era do esplendor dessas organizações, é que temos que superar a tristeza pelo que tínhamos e perdemos, e precisamos inventar coisas com os recursos que temos agora, Rodriguez disse em uma entrevista de 2018 para o "Punto de partida", um relatório produzido pela SembraMedia e a Google News Initiative na Argentina. O relatório procurou identificar como os professores das faculdades ibero-americanas de jornalismo abordavam a mentalidade empreendedora em suas salas de aula e como viam o estado da instrução empreendedora em suas instituições educacionais.

O diagnóstico não foi bom. A maioria considerou que o empreendedorismo da mídia não é uma prioridade em suas universidades. E, quando tem um espaço, é isolado do restante do currículo. Os professores de jornalismo empreendedor lidam com a falta de conhecimento sobre o assunto entre seus alunos e o desinteresse entre seus colegas. Isso contribuiu para um desapego completo do ecossistema empreendedor local.

A desconexão entre as faculdades de jornalismo e o empreendedorismo da mídia evidencia uma grande tensão entre o jornalismo na academia e a indústria profissional.

Pelo menos nos Estados Unidos, essa brecha tem sido historicamente mais forte e persistente do que em outras disciplinas, como revelou um relatório de 2013 publicado pela Universidade Columbia, ““Educating Journalists: A New Plea for the University Tradition”. Enquanto o setor de mídia profissional exige um foco mais prático, enfatizando as habilidades e a pesquisa aplicada, as universidades priorizam a pesquisa acadêmica.

Faculdades de jornalismo e organizações de notícias, no entanto, convergem em um aspecto: suas batalhas na era digital. Ambas resistiram e, por sua vez, tiveram dificuldade em se adaptar à ruptura tecnológica. Elas perderam a confiança no trabalho e foram forçadas a procurar novos modelos de negócios. Uma das análises mais citadas sobre esse assunto é o "Post-Industrial Journalism", que também é abordada no Digital News Reports do Instituto Reuters.

Outros fatores também estão em jogo nas universidades, incluindo rigidez institucional, longos processos de acreditação, resistência entre acadêmicos e percepções dos estudantes de que a indústria da mídia permanece tão estável quanto em 1980.

As faculdades de jornalismo não são atores secundários, nem operam em um universo paralelo. São parte integrante do ecossistema de jornalismo, juntamente com organizações de notícias nativas digitais e tradicionais, jornalistas profissionais e "as pessoas anteriormente conhecidas como público", como descreveu o professor e crítico de mídia da Universidade de Nova York, Jay Rosen.

Os cursos de jornalismo não devem apenas ajudar a repensar o ofício, como é realizado e como pode ser melhorado; também devem trabalhar para fortalecer a indústria. Hoje, as faculdades são um elo esquecido quando se trata de jornalismo empreendedor.

Algumas experiências, no entanto, demonstram uma mudança na maneira como as universidades estão abordando o espírito empreendedor. Veja Betty Tsakarestou, por exemplo. Tsakarestou dirige um laboratório de publicidade e relações públicas e ministra um curso de pós-graduação em liderança e jornalismo empreendedor na Universidade Panteion em Atenas, Grécia.

Ela começou a apresentar jornalismo empreendedor e inovação de mídia aos alunos em 2015. “[Eu segui] o protótipo de incubadoras e programas de aceleração, passando por todas as metodologias como modelos enxutos [e] design thinking e conectando estudantes a jornalistas ou mídia empreendedora inovadores na Grécia, Europa ou outros países através de chamadas por Skype”, explicou ela.

Nos últimos dois anos, sua turma colaborou com a Antenna Music, parceira de mídia tradicional, para enfrentar os desafios de inovação focados na criação de protótipos de startups em torno de áudio, rádio e música. Juntos, também usaram Startup Weekends — eventos de vários dias em que os participantes lançam ideias de startups, constroem equipes e apresentam protótipos — para reunir estudantes, profissionais e membros da comunidade local na Grécia.

Antes disso, em 2010, Miguel Carvajal, professor da Universidade Miguel Hernández, da Espanha, de Elche, fazia uma pós-doutorado em Nova York. Ele investigou novos modelos de negócios para o jornalismo e conheceu empreendedores e professores de mídia, como Jeremy Caplan  e Jeff Jarvis, em um dos epicentros do jornalismo empreendedor na academia: a Faculdade de Jornalismo Craig Newmark na Universidade da Cidade de Nova York. Hoje, Carvajal lidera o programa de mestrado em inovação jornalística, um dos poucos na Espanha.

"Ao focarmos na inovação, podemos incorporar não apenas a criação de startups, mas também a criação de projetos empreendedores inovadores", disse Carvajal em entrevista ao "Ponto de partida".

Segundo Tsakarestou, essa tendência evoluiu simultaneamente na América do Norte e na Europa, tanto como uma conceituação teórica quanto uma disciplina que incorporou iniciativas como hackatonas, campos de inovação, incubadoras e aceleradores. Vários atores do jornalismo, incluindo universidades, podem usar modelos semelhantes.

O que acontece com o resto do mundo, na América Latina, África e Ásia? O que achamos que pode ser feito de maneira diferente? As descobertas no "Ponto de partida" oferecem informações que podem ser aplicadas a outras regiões do mundo:

  1. O ensino do jornalismo empreendedor é um fenômeno recente — muito diferente dos cursos tradicionais que cobrem o setor de notícias — e ainda há muitas oportunidades para as faculdades de jornalismo se envolverem com o tópico. Dos professores entrevistados, 76% começaram a ministrar esses cursos entre 2012 e 2018. Além disso, identificamos apenas cerca de 50 universidades latino-americanas — das mais de 1.700 em que jornalistas são treinados na região — oferecendo cursos desse tipo.
  2. A combinação de experiência é importante: descobrimos que 64% dos professores tinham formação como jornalistas empreendedores. Se as universidades não têm professores treinados nessa área, podem procurar profissionais no ecossistema de mídia local.
  3. Quase metade dos professores acredita que seus alunos não desejam iniciar meios de notícias porque não possuem recursos financeiros e habilidades de gerenciamento. As faculdades de jornalismo podem desenvolver oficinas para apresentar aos alunos uma mentalidade empreendedora, além de estabelecer sinergias com os cursos de economia das universidades.
  4. Convidados especialistas são necessários, mas é preciso diversificar: 80% dos professores convidaram um jornalista empreendedor para suas aulas, mas poucos convidaram um investidor de mídia. Existe oportunidade para estabelecer laços mais fortes com a comunidade empreendedora local, gerando transferência de conhecimento, tecnologias, redes e oportunidades concretas.

Essas sugestões não são obrigatórias. Todo curso de jornalismo, no entanto, deve pensar em sua hipótese formativa: que tipo de jornalista deseja educar?

As faculdades de jornalismo não podem ser deixadas de fora da discussão sobre o presente e o futuro do jornalismo. Também não devem se isolar. O jornalismo de hoje deve ser reformulado, tanto nas redações quanto nas salas de aula, porque os alunos trabalharão em um ecossistema de mídia enfraquecido ou não terão nenhum trabalho.

Cabe a nós contribuir para um futuro mais animador para eles, para organizações de notícias e para as pessoas anteriormente conhecidas como o público.

Media Entrepreneurship Toolkit

Este artigo faz parte do nosso Kit de Ferramentas para Empreendedorismo de Mídia, que lançamos com o apoio do Civil. Confira para descobrir mais artigos sobre como lançar seus próprios empreendimentos de mídia


Patricio Contreras é jornalista chileno, professor universitário e coordenador de Iniciativas Acadêmicas da SembraMedia. Siga Patricio no Twitter.

Imagem principal sob licença CC no Unsplash via Victoria Heath