Em meio a mudanças de poder em Bangladesh, jornalistas seguem sob ataque

Apr 23, 2025 em Liberdade de imprensa
Aerial view of Dhaka

Na noite do dia 5 de fevereiro, um clima tenso tomou conta do bairro histórico de Dhanmondi 32, em Dhaka, Bangladesh, quando manifestantes se reuniram em frente à antiga casa do Sheikh Mujibur Rahman, presidente fundador do país. Eles estavam furiosos com uma fala da ex-primeira-ministra Sheikh Hasina, filha de Rahman, seis meses após ela ter sido destituída do poder, em agosto.

Mohammad Omar Farok, jornalista de um canal de TV em Dhaka, estava no local para registrar a situação em uma entrada ao vivo à meia-noite. Enquanto ele descrevia a cena, se referiu a Rahman como "Bangabandhu" (Amigo de Bengal), um título concedido a ele pela população em 1969.

Esta única palavra gerou fúria entre os manifestantes, muitos dos quais se recusam a reconhecer Rahman como o "Amigo de Bengal" ou o "Pai da Nação", não só porque consideram o governo liderado por sua filha, à frente da Liga Popular de Bangladesh, autoritário e uma traição aos ideais fundadores, mas também porque afirmam que o mandato do próprio Rahman foi marcado por polêmicas. Centenas de pessoas se aglomeraram em volta de Farok, exigindo que ele se desculpasse por usar o termo, acusando-o de imparcialidade e rotulando-o como um "colaborador fascista". Alguns tentaram agredi-lo fisicamente, enquanto outros jogaram garrafas d'água e o insultaram. Colegas jornalistas que tentaram intervir foram atacados.

O caso de Farok não é isolado. "Embora a gente não receba mais ligações de agências de inteligência para parar de cobrir certos assuntos, os jornalistas e as redações estão se autocensurando por medo", diz. "A ameaça de ser rotulado como 'colaborador fascista' ou de ser atacado por uma multidão criou um clima de terror. Autocensura, intimidação nas manifestações e esses rótulos tóxicos estão mutilando o jornalismo."

Aumento dos ataques

A organização de direitos humanos Ain o Salish Kendra registrou 531 casos de ataques contra jornalistas em 2024. Desse total, 235 ocorreram entre janeiro e julho, durante o mandato de Hasina, e os demais aconteceram após o novo governo interino, liderado por Muhammad Yunus, assumir o poder após a revolta de julho e agosto. Cerca de 1.400 pessoas morreram durante os protestos. Segundo um relatório da ONU, o governo e as forças de segurança e inteligência de Hasina foram responsáveis pela repressão.

De acordo com a Repórteres Sem Fronteiras (RSF), após a mudança de poder, cerca de 140 jornalistas vistos como alinhados ao governo de Hasina enfrentaram "acusações sem embasamento e extremamente graves de terem matado manifestantes". Vinte e cinco foram acusados de "crimes contra a humanidade", forçando muitos deles a se esconderem para evitar a prisão.

"Esses casos são dúbios, na maioria das vezes alegando que os jornalistas atacaram os manifestantes sem especificar as vítimas. Em alguns casos, nem mesmo os responsáveis pela queixa estavam cientes dos supostos ataques, mas mesmo assim os nomes dos jornalistas foram registrados", diz Saleem Samad, defensor dos direitos da imprensa e correspondente da RSF. "Embora as forças de segurança e pessoas ligadas à Liga Popular de Bangladesh estivessem por trás da maior parte dos ataques, os processos foram abertos contra os jornalistas, muitos dos quais sequer estavam presentes no local. Desde a queda de Hasina, muitos estão sendo falsamente envolvidos em tiroteios relacionados às manifestações e sofrendo extorsões para terem seus nomes removidos."

Nos primeiros dois meses de 2025, a Ain o Salish Kendra registrou 62 ataques contra jornalistas. Desse total, cinco foram vítimas de acusações forjadas, 25 foram atacados enquanto trabalhavam e cinco foram processados por causa de matérias publicadas.

Um exemplo é o de Mahmud Tanjid, correspondente do Daily Sangbad na Universidade Jagannath University. Após a mudança de governo, ele publicou uma matéria sobre como a ala estudantil do partido político Jamaat-e-Islami havia assumido o controle de organizações culturais e sociais dentro da universidade. Um dos funcionários dessas organizações processou o jornalista por difamação. 

"Eu tinha provas de que eles controlavam essas organizações, mas se mantinham escondidos durante o governo de Hasina", diz Tanjid. "Após a mudança de poder, uma lista do comitê deles revelou que as lideranças também comandavam organizações universitárias. O processo foi aberto para me atacar, me isolar e atrapalhar minhas investigações para dizer a verdade." 

Organizações de direitos da imprensa condenaram o caso e pediram mais proteção para jornalistas e um fim ao uso indevido do sistema legal para silenciar o dissenso.

Mudança de poder em Bangladesh

Desde a queda do governo de Hasina, a mídia em Bangladesh sofreu uma grande transformação. Além da perseguição do sistema jurídico, a Unidade de Inteligência Financeira de Bangladesh ordenou aos bancos que congelassem as contas de vários jornalistas e o Ministério da Informação revogou a credencial de imprensa de 167 jornalistas

Paralelamente, os dois jornais de maior circulação do país, Daily Star e Prothom Alo, sofreram ataques coordenados. E em Rajshahi, cerca de 200 manifestantes invadiram a redação do Prothom Alo. Eles destruíram o letreiro do jornal e chamaram a publicação de "agente da Índia".

A estrutura proprietária de muitos veículos também mudou, com jornalistas alinhados ao Partido Nacionalista de Bangladesh e ao Jamaat-e-Islami assumindo cargos que antes eram dos afiliados à Liga Popular de Bangladesh. Considerando jornais, canais de TV e plataformas digitais, houve substituições em 29 cargos de liderança.

Logo após a revolta de julho e agosto, um grupo estudantil de manifestantes também começou incluir jornalistas em listas sujas, afirmando que os profissionais listados "estavam envolvidos em atividades disfarçadas de jornalismo contra os interesses nacionais e do Estado". Muitos desses jornalistas foram forçados a fugir, se esconder ou abandonar a profissão, enquanto outros foram processados e presos.

Beh Lih Yi, coordenadora do Comitê de Proteção aos Jornalistas na Ásia, ressalta a situação alarmante da liberdade de imprensa em Bangladesh, seis meses depois de uma transição política histórica.

"Nós estamos preocupados com as prisões e ações criminais contra jornalistas aparentemente sem fundamento, bem como com os incidentes em que redações são atacadas e vandalizadas. Esses ataques à liberdade de imprensa precisam parar. Eles criam um efeito inibidor na mídia", diz. "Essa nova era política não deve ser uma repetição do manual do antigo governo, que usava a lei para perseguir críticos e jornalistas. Ao mesmo tempo, a mídia precisa se manter ética e poder informar sem medo de represálias."


Foto por Kelly via Pexels.