Como usar imagens em matérias sobre violência sexual

por Dart Centre Europe
May 26, 2022 em Reportagem de crise
Photography CRSV

Quando você está cobrindo violência sexual relacionada a conflitos (VSRC), as escolhas visuais que você faz — seja imagem ou foto — são essencialmente importantes. Principalmente agora, na era digital, as imagens têm uma vida útil que vai além da pauta em que você está trabalhando. É crucial que as sobreviventes entendam como vão ser apresentadas visualmente e quais são as implicações disso. Você deve considerar:

  • Há uma justificativa forte para identificar sobreviventes ou é mais seguro começar com o anonimato?
  • As sobreviventes deram seu consentimento consciente para serem fotografadas ou filmadas? Elas entendem o alcance das redes sociais?
  • Há algo na imagem que poderia inadvertidamente revelar suas identidades?
  • Como eu posso colocá-las em uma imagem de modo que elas se sintam confortáveis com o resultado final?
  • E a verificação de ética básica: eu ficaria satisfeita se eu ou uma pessoa da família fôssemos fotografadas ou filmadas desse modo?

Deixe me ser clara — imagens de estupro em conflitos e de sobreviventes de estupro precisam ser feitas e vistas amplamente. Elas só precisam ser feitas de formas diferentes de modo a proteger as pessoas, respeitar o contexto e não perpetuar estereótipos e não serem apresentadas pelos veículos de mídia como algum tipo de elixir mágico para sobreviventes — Nina Berman [a] 

Imagens são um componente vital da cobertura de conflitos, incluindo a cobertura de (VSRC), e podem ser um meio poderoso para se conectar com os leitores. Mas há uma margem significativa para causar danos às sobreviventes, e que vai além dos riscos de entrevistá-las.

Clichês visuais são comuns — mostrar a sobrevivente como isolada ou brutalizada, retirada de seu próprio ambiente, ou focando intensamente na parte física. Em algumas ocasiões, isso pode também se esbarrar em uma longa história de imagens racistas que remontam ao colonialismo e escravidão. O letramento visual é um componente vital para fazer isso do jeito certo.

Além disso, imagens são compartilhadas facilmente na era digital, em diferentes aparelhos e em várias plataformas, o que significa que as sobreviventes podem ser assombradas por essas imagens mesmo se viverem em lugares remotos ou anos depois do ocorrido. Nas guerras dos Balcãs nos anos 1990, houve casos em que mulheres se casaram sem dizer aos seus maridos que foram estupradas. Quase nenhuma sabia que material de arquivo poderia estar disponível online décadas depois.

A era digital também está gerando mais matérias focadas em imagens e a pressão sobre editores e fotógrafos para produzir a imagem mais chocante e que mais chama atenção pode ser intensa. Isso pode resultar em imagens que fetichizam o corpo da sobrevivente ou identifique-a desnecessariamente.

Conforme discutido anteriormente na seção #3 deste link sobre consentimento, envolver as entrevistadas em decisões sobre como elas vão ser retratadas é uma boa prática. Jornalistas que cobriram o estupro de mulheres yazidis pelo Estado Islâmico garantiram o anonimato das mulheres fotografando-as com os rostos cobertos, mas na verdade elas eram facilmente identificáveis onde moram pelos olhos e lenços que usavam. 

Fazendo escolhas visuais mais eficientes e éticas

Ainda que jornalistas trabalhem frequentemente sob pressão dos editores para obter as imagens mais impactantes, é possível fazer imagens de sobreviventes de VSRC que evitem danos às pessoas e clichês mesmo quando os prazos são curtos. Abaixo estão algumas perguntas para se fazer sobre as imagens que você estiver produzindo:

  • Você pode partir da hipótese de que quaisquer imagens de sobreviventes vão ser anônimas, e que elas só serão identificadas se houver uma justificativa muito forte para isso? Considere discutir isso em detalhes com a chefia antes de chegar ao seu destino.
  • Há muitas formas poderosas e criativas de fazer imagens que não identificam sobreviventes. É melhor pensar sobre isso com antecedência. Você pode ter um arquivo digital que reúna as várias formas pelas quais outras pessoas conseguiram fazer isso.
  • Se a matéria for sobre estupro, tenha em mente como você vai representar o corpo da sobrevivente. Para qual parte do corpo você vai chamar atenção e como você pode evitar qualquer percepção da pessoa como um objeto sexual?
  • Tente evitar clichês visuais que sugiram que a pessoa está sozinha ou destruída. Em alguns casos, o isolamento extremo pode ser a realidade da sua pauta, mas normalmente as pessoas têm um contexto mais amplo de apoio — e é mais correto refletir isso.
  • Se você estiver usando técnicas digitais para mascarar a identidade, os pixels originais precisam ser removidos da imagem e não apenas borrados. E, claro, você deve se certificar de que não há metadados nos arquivos que identificam a localização. É importante também pensar sobre quem pode estar por perto quando as imagens estiverem sendo feitas e por quê. Abaixo estão alguns pontos que devem ser considerados:

A pessoa gostaria de ter alguém ao lado dela ou há pessoas por perto que não deveriam estar? Para produtores de documentário, considere reduzir a equipe.

Depois das imagens terem sido feitas, considere mostrá-las às sobreviventes para permitir que elas digam se estão satisfeitas com a forma como foram registradas.

Assegure-se de que as sobreviventes entendam que as imagens podem circular por muito tempo e que podem ser compartilhadas em diferentes plataformas, inclusive nas comunidades das quais elas fazem parte.

É possível não apressar a pauta? Você pode discutir como será a filmagem antecipadamente e explicar quanto tempo vai levar? Lembre-se de que crianças nunca podem dar consentimento para o compartilhamento de sua identidade, independentemente de um adulto fornecê-lo.

Fotojornalismo e editores

Eu consigo entender um fotógrafo não tendo todas essas questões em mente, mas um editor, é simplesmente chocante. Eu acho que, para os editores, há um senso maior de responsabilidade sobre ter letramento visual em termos de contexto histórico — Nina Berman [a]

Fotógrafos interagem com sobreviventes e tomam decisões sobre escolhas visuais. Mas cabe aos editores a decisão final sobre quais imagens devem ser feitas e escolhidas a partir de um conjunto de fotos antes delas chegarem ao público. O que pode ser apropriado para uma página interna — onde há significado e contexto — pode ter um significado completamente diferente se for usada sozinha em uma capa ou em um post no Instagram.

Com o benefício da expertise e tempo para pensar estrategicamente longe das pressões da cobertura em campo, editores devem considerar a linguagem visual que uma fotografia pode deliberada ou inadvertidamente referenciar. Há uma longa história de imagens de pessoas escravizadas, por exemplo, que quem trabalha com imagens em países em desenvolvimento deveria evitar.

Editores de fotografia também podem ter o poder de tomar decisões sobre o pós-vida de uma imagem — seu licenciamento e disponibilidade — assim como a maneira como é usada nas redes sociais.

Na condição de editor, você vai trabalhar com colegas de longa data ou freelancers com quem nunca se encontrou. Tirar um tempo para uma conversa breve de dez minutos sobre limites, consentimento consciente e anonimato pode fazer uma grande diferença. Algumas coisas para se considerar:

  • Você teve uma conversa adequada com os fotógrafos sobre consentimento? [Veja o tópico #3 neste link]
  • As sobreviventes realmente precisam ser identificadas? Quais tratamentos visuais funcionariam para preservar o anonimato?
  • Legendas são parte da matéria e, assim como imagens, não devem fetichizar ou estigmatizar a pessoa.
  • Você consegue limitar o tempo das imagens de sobreviventes de VSRC? Você pode utilizá-las somente em uma matéria e não vendê-las para agências?
  • Como você está usando as imagens nas redes sociais? Você precisa mostrar o rosto ou corpo de uma sobrevivente no Instagram, por exemplo, ou há outra forma de promover a matéria que não deixe a sobrevivente carregando sozinha todo o peso disso?

[a] Nina Berman é fotógrafa documental e cobriu conflitos na Bósnia e no Afeganistão. Colaboradora da pesquisa para este projeto, ela escreveu sobre ética de fotografia em conflito e em tempos de paz e é professora de jornalismo na Universidade Columbia. Para mais informações, acesse: https://dartcenter.org/resources/visual-choices-covering-sexual-violence-conflict-zones 

Foto por Wes Powers no Unsplash.

Este texto foi originalmente publicado pelo Dart Centre Europe como parte de uma série de materiais sobre cobertura de violência sexual relacionada a conflitos. Ele foi republicado na IJNet com permissão.