Como o jornalismo na Ucrânia mudou com a guerra

Mar 7, 2023 em Reportagem de crise
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Os jornalistas ucranianos têm sido expostos a bombardeios frequentes, muitas vezes deliberadamente direcionados, enquanto se esforçam para manter o público informado sobre a invasão russa. Embora a situação seja particularmente dura para jornalistas em áreas ocupadas pela Rússia, a guerra impactou a mídia em toda a Ucrânia.

Um ano após o começo da invasão, eu conversei com jornalistas ucranianos sobre como a guerra os colocou em perigo, impactou sua saúde mental e os forçou a trocar de editorias. Na sequência está o que eles têm a dizer.

Notícias sobre a guerra acima de tudo

No dia 24 de fevereiro do ano passado, a repórter investigativa Maryanochka Sych estava trabalhando em um caso de corrupção em Lviv, na Ucrânia. Assim que ficou sabendo da invasão russa, ela deixou essa apuração para trás.

"Eu recebi uma ligação de um amigo em uma cidade na fronteira com a Rússia; ele me disse que as tropas russas tinham invadido a capital. Eu corri para ver como meu pai estava, já que ele trabalhava em Kiev, e fiquei louca quando ele não atendeu", diz Sych. "Horas depois, eu fiquei sabendo que ele estava se escondendo com outras pessoas em um porão. Essa foi a primeira vez que eu senti a guerra. A partir daquele dia, eu deixei de monitorar casos de corrupção na minha região. Nos últimos meses, só trabalhei com notícias sobre a guerra e seus desdobramentos, incluindo os refugiados que lotaram Lviv."

 

Sych

Maryanochka Sych. Foto cedida pela jornalista

 

Mas a atenção redobrada dos jornalistas voltada para a guerra tem um custo. Sych observa que alguns veículos ucranianos tendem a focar exclusivamente na guerra em detrimento de outras pautas que precisam virar notícia.

"Os jornalistas locais estão ganhando experiência sólida em cobertura de guerra, mas é muito evidente o impacto negativo em jornalistas que trabalham em outras áreas como entretenimento e esportes, bem como outras editorias e investigações como casos de corrupção nos quais eu trabalhava", diz. 

Sem tempo para descansar

Especialistas em direitos designados pela ONU documentaram inúmeros relatos de jornalistas sendo "torturados, sequestrados, atacados e mortos ou que tiveram recusado o deslocamento seguro em regiões sob o cerco da Rússia na Ucrânia". Pelo menos 12 jornalistas foram mortos enquanto cobriam a guerra, de acordo com o Comitê de Proteção aos Jornalistas, além de outros que foram presos ou sofreram assédio.

"Usar o crachá de imprensa não ajuda sempre. As forças russas visam um jornalista local ucraniano a sangue frio", diz Peter Sazonov, fotojornalista ucraniano. "Meus colegas foram capturados e mortos em territórios ocupados pela Rússia porque eram ucranianos. A situação é ligeiramente melhor quando o jornalista é estrangeiro."

 

Sazonov

Peter Sazonov. Foto cedida por Sazonov 

 

Sazonov diz que não tem um único dia de descanso na cobertura da guerra nem recebe apoio psicológico para lidar com o que ele tem testemunhado durante seu trabalho. "Não há ninguém que tenha tomado a iniciativa de apoiar psicologicamente os jornalistas de guerra locais. Além disso, jornalistas não têm tempo pra isso já que trabalham dia e noite", diz. 

Stanislav Storozhenko, jornalista de Kiev que agora trabalha no leste da Ucrânia, concorda que cobrir a guerra gera um desgaste mental nos jornalistas e que eles não têm ajuda.

"Histórias de crimes de guerra da Rússia contra jornalistas me impactaram muito", diz. "Freelancers em especial não têm nenhuma ajuda psicológica. Eu não ouvi falar de nenhuma iniciativa voltada para isso. Quem está ocupado na linha de frente não tem tempo para se envolver nesse processo."

Fixers, os soldados anônimos

Não tem faltado trabalho na Ucrânia neste último ano para os fixers, profissionais que prestam todo tipo de assistência. A chegada de jornalistas estrangeiros que chegam ao país para cobrir a guerra e não conhecem o idioma nem a sociedade local incentivou alguns ucranianos fluentes em outras línguas, como inglês e espanhol, a trabalharem como fixers locais e tradutores para ajudar a imprensa estrangeira na Ucrânia.

Alex Morozov é fixer e mora em Kiev. Antes da guerra, ele tinha uma empresa de frete, mas interrompeu o trabalho devido ao conflito. Pouco tempo depois, ele e sua equipe se viram trabalhando com o transporte e assistência a jornalistas estrangeiros. Ter carros e a habilidade de falar inglês o ajudou a conseguir um emprego como fixer.

"Eu comecei como voluntário para ajudar refugiados dentro do país, depois eu ajudei uma jornalista dos Estados Unidos na viagem dela para cobrir a guerra. Em pouco tempo eu estava recebendo muitas ofertas para prestar assistência a equipes de imprensa do mundo todo que queriam que eu estivesse em várias cidades da Ucrânia", diz Morozov. "Não recebi nenhum treinamento para trabalhar em um ambiente de guerra. Mas depois de uma visita a Kherson com uma equipe de imprensa europeia, eu comecei a me qualificar como paramédico para que eu possa ajudar as pessoas na linha de frente."

Oleksii Otkydach também não tinha nenhuma experiência com jornalismo antes da guerra; ele era professor de espanhol. Sua bagagem na educação permitiu que ele fornecesse análises sobre a guerra para veículos de países que falam espanhol.

"Eu chamei a atenção de uma equipe de jornalistas argentinos quando fazia comentários para canais da Espanha. Eles queriam que eu colaborasse como um fixer durante a viagem deles à Ucrânia", diz Otkydach. "Um fixer precisa de treinamento especial – no mínimo, habilidades básicas como gestão de logística, saber dirigir e ter contatos e conhecimento em primeiros socorros. Do contrário, muitas pessoas podem correr riscos de segurança." 

 

Oleksii

Olekssi Otykydach, foto cedida por Otykydach

Uma plataforma de mídia para todos

Em 16 de março de 2023, poucos dias depois da invasão russa, o Centro de Mídia da Ucrânia realizou sua primeira coletiva de imprensa em Lviv para anunciar que tinha criado uma nova plataforma com dezenas de veículos locais e internacionais, bem como ONGs, para acompanhar os desdobramentos relacionados à guerra.

O centro ajuda a capacitar jornalistas e coloca em contato repórteres estrangeiros e voluntários locais que falam inglês para ajudar os profissionais enquanto eles estiverem no país. A organização também tem uma newsletter diária e faz encontros regularmente. 

O centro abriu seu primeiro escritório em Lviv, no oeste da Ucrânia. Depois das tropas russas se retirarem de Kharkiv em setembro, abriu mais três escritórios em Kiev, Odesa e Kharkiv.


Foto por Nati Melnychuk via Unsplash.