Enquanto a Índia realiza a maior eleição do mundo neste ano, uma tendência alarmante não pode ser menosprezada: o Partido do Povo Indiano (BJP), atualmente no poder, está usando a legislação como uma arma para perseguir jornalistas críticos às suas políticas.
Desde 2014, o governo já acusou pelo menos 15 jornalistas sob a limitada lei antiterrorismo, a chamada Lei de Prevenção a Atividades Ilegais (UAPA). Nesse período, 36 jornalistas foram presos no país.
As prisões de jornalistas com base na UAPA são um indicativo da maior repressão à liberdade de imprensa na Índia sob o BJP.
Com as pesquisas prevendo a vitória do atual primeiro-ministro Narendra Modi e do BJP, especialistas alertam que o governo Modi vai aprofundar ainda mais o uso da UAPA e de outras leis para perseguir a mídia independente após as eleições.
Invasões a redações de veículos
Em março, a polícia indiana apresentou queixas contra o NewsClick, site independente conhecido por seu posicionamento crítico em relação ao governo, e seu fundador Prabir Purkayastha, alegando que o veículo recebeu dinheiro estrangeiro para publicar propaganda pró-China.
As queixas foram acompanhadas, em outubro, de invasões da Polícia Especial de Delhi à redação do NewsClick e às casas de vários jornalistas. Purkayastha foi preso à época com base na UAPA, que permite realizar prisões de até 180 dias sem julgamento ou acusações.
Purkayastha se junta a pelo menos outros oito jornalistas presos sob a UAPA, de acordo com o Coletivo de Liberdade de Expressão, que monitora e documenta violações do direito à livre expressão na Índia. Dezenas de jornalistas também foram oficialmente acusados de outros crimes.
"O que mais me surpreendeu foi o fato de que aparelhos eletrônicos pessoais, incluindo laptops, celulares, pen drives e discos rígidos pertencentes a cerca de 90 pessoas, a maioria delas jornalistas, e inclusive os meus, foram confiscados pela polícia e ainda não foram devolvidos", diz Paranjoy Guha Thakurta, cineasta e jornalista no NewsClick. Embora os aparelhos de Thakurta tenham sido devolvidos no dia da invasão, os pertences da maioria das outras pessoas ainda estão com a polícia.
Thakurta, que também foi perseguido na batida policial de outubro, é conhecido por suas investigações do magnata bilionário Gautam Adani, que tem laços estreitos com o primeiro-ministro Modi. Adani abriu vários processos de difamação contra Thakurta.
Thakurta diz que, após a invasão da polícia à redação do NewsClick, o Departamento de Imposto de Renda do país congelou as contas bancárias do site, impedindo o veículo de pagar seus 45 funcionários e 15 consultores, incluindo Thakurta, durante cinco meses.
Em fevereiro de 2023, uma invasão semelhante teve como alvo a redação da BBC em Nova Delhi e Mumbai, três semanas depois do veículo lançar um documentário crítico ao papel de Modi nos protestos de Gujarat, em 2002, que resultaram nas mortes de mais de 1.000 pessoas, a maioria delas mulçumanas. Logo após a ação da polícia, o governo liderado pelo BJP proibiu a exibição do documentário na Índia.
"Isso é feito para mandar uma mensagem assustadora a outros veículos independentes", diz Thakurta.
Uso de leis como armas
A UAPA existe há mais de 50 anos, mas em 2019 o BJP fez emendas ao texto, concedendo às autoridades a possibilidade de qualificar uma pessoa como "terrorista" antes de ser provado qualquer crime no tribunal. Uma emenda de 2022 à Lei de Prevenção à Lavagem de Dinheiro é outro exemplo do uso de leis como armas contra jornalistas, diz Thakurta.
"Essas leis já existem há algum tempo", diz Thakurta. "Mas a forma como elas vêm sofrendo emendas nos últimos anos as transformou em armas que estão sendo usadas aleatoriamente contra jornalistas, oponentes políticos e ativistas sociais."
O confisco de aparelhos eletrônicos de jornalistas com base na UAPA traz outra preocupação, explica Kunal Majumder, representante da Índia no Comitê de Proteção aos Jornalistas. "O acesso das forças de segurança às informações de jornalistas é também uma clara ameaça à privacidade digital deles", diz. "A prática de confiscar aparelhos eletrônicos aumenta o risco de evidências falsas serem potencialmente plantadas contra jornalistas, o que impacta a capacidade desses profissionais de trabalhar sem medo de represálias."
Consequências para os jornalistas
As invasões e prisões fizeram com que muitos jornalistas indianos se questionassem sobre continuar ou não trabalhando no atual clima político.
"Eu não sei muito bem como seguir adiante. Sendo o único ganha-pão da minha família, ter perdido o meu emprego depois de ser preso causou uma tensão financeira significativa", diz Siddique Kappan, jornalista independente que foi detido sob a UAPA em outubro de 2020 quando cobria o caso envolvendo o estupro coletivo e assassinato de uma jovem Dalit em Uttar Pradesh, o estado mais populoso da Índia. Kappan foi preso por conspiração para incitar a violência e revolta contra a autoridade constituída, e ainda sofreu acusações de lavagem de dinheiro; ele nega todas as queixas.
Em fevereiro de 2021, a Suprema Corte concedeu a Kappan cinco dias de fiança provisória para que ele visitasse a mãe doente, sob a condição de que ele não se encontrasse com ninguém a não ser seus parentes e os médicos da mãe. Mas ele não pôde comparecer às últimas cerimônias em homenagem à mãe quando ela faleceu naquele mesmo ano, em junho. "Eu ainda não consegui superar o dano emocional de perder minha mãe enquanto estava preso", diz.
A UAPA dificulta a obtenção de fiança por jornalistas, observa Majumder. "Com disposições que permitem até seis meses de custódia, podendo ser prorrogados, jornalistas muitas vezes se veem presos em um limbo legal após a prisão."
Kappan foi libertado da prisão em fevereiro de 2023, depois de passar 846 dias atrás das grades. Apesar de sua rede profissional, ele está com dificuldades para conseguir trabalho. "Eu acredito que minha experiência é um exemplo da tendência perigosa hoje na Índia de silenciar divergências por meio de acusações infundadas", diz Kappan.
Desafios à frente
Veículos e jornalistas independentes lutando para manter seu trabalho na Índia podem ter anos desafiadores à frente, diz o jornalista investigativo Josy Joseph.
A falta de responsabilização e de controle está viabilizando um ambiente em que agências do governo como a Diretoria de Fiscalização, o Escritório Central de Investigação e o Departamento de Imposto de Renda têm poderes para assediar, intimidar e prender jornalistas.
"Somente durante o período de emergência declarada, entre 1975 e 1977, nós testemunhamos jornalistas sendo perseguidos dessa forma", diz Joseph. "A escala com a qual o atual governo está perseguindo jornalistas é certamente menor do que durante a emergência, mas é repetitiva e sem precedentes para um país democrático como a Índia."
Ele acrescenta uma observação de alerta. "Se Modi voltar ao poder, veículos independentes vão ter que se unir para continuar com seu trabalho livre e crítico."
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