A religião está presente em todas as dimensões da vida social brasileira. Nove em cada dez pessoas no país acreditam em Deus ou em um poder maior, mostra pesquisa global da empresa Ipsos. Assim, religião e religiosidade vão muito além do âmbito privado.
O jornalismo deve observar essa realidade com atenção. Cobrir temas religiosos com precisão, conhecimento e sem preconceitos é uma tarefa importante para compreender como a fé influencia a política, a educação, a saúde e diversas outras áreas. Veja a seguir reflexões e dicas de três jornalistas especializadas no tema:
Evite generalizações e simplificações
Conhecer os elementos básicos de cada segmento religioso citado em uma reportagem é essencial para evitar erros que minam a confiança dos consumidores de notícias no repórter ou veículo. É o que afirma a repórter especial da Folha de S.Paulo, Anna Virginia Balloussier. Para ela, a confusão entre os verbos "orar" e "rezar" é um exemplo disso. “No Brasil, o evangélico não reza, só ora. É uma diferenciação em relação aos católicos”, explica ela.
Balloussier ressalta a importância de pluralizar a religião e não tratá-la como algo monolítico. A jornalista e pesquisadora Magali Cunha concorda: “Existe uma pluralidade religiosa que passa por diferentes religiões, mas, dentro de cada uma, há também uma diversidade de grupos, de tendências, de teologias e de tradições. Isso precisa se refletir na abordagem jornalística e na pluralidade de fontes ".
Por conta dessa diversidade interna, Cunha orienta quem deseja escrever sobre o tema a não considerar uma única pessoa entrevistada como representante de todo um grupo religioso. “Isso não é possível, nem com evangélicos, nem com espíritas, nem com pessoas de matriz afro”, completa Cunha, responsável pela coluna Diálogos da Fé, na revista CartaCapital, e editora-chefe do Coletivo Bereia. Uma dica é caracterizar e contextualizar a pessoa ou liderança ouvida: quem é ela? Qual segmento dentro desse universo diverso pertence? Qual sua trajetória e formação?
Jornalismo de terreiro
Apostar em pautas que vão além dos grupos religiosos hegemônicos também é uma forma criativa de cobrir o tema. De acordo com a jornalista freelancer Bianca Levy, ainda existe uma falta de adesão dos veículos de comunicação a pautas relacionadas às religiões de matriz africana. Muitas vezes, essas pautas são colocadas abaixo dos critérios de noticiabilidade, inviabilizando a continuidade desse tipo de cobertura jornalística.
Esta cobertura específica é chamada de “jornalismo de terreiro”: se concentrar em explorar e divulgar notícias e informações sobre as comunidades tradicionais de terreiros - espaços de perpetuação das manifestações religiosas de matriz africana no Brasil. Levy já publicou sobre o tema em diferentes veículos, como a Amazônia Real, Portal Correio e Jornal Diário do Pará.
Ela também considera que ser membro de uma comunidade religiosa pode ajudar o jornalista a entender melhor os símbolos, conceitos e rituais. Como nem sempre é possível, uma saída é procurar acompanhar cerimônias e eventos religiosos abertos a pessoas não adeptas ou a o público em geral. Quase todas as religiões possuem esses espaços. Em todos os casos, é preciso tomar cuidado e garantir que o conteúdo passe por um processo de edição que garanta os preceitos básicos do jornalismo.
Cuidado com o viés católico hegemônico
Para Cunha, por conta da hegemonia histórica do catolicismo no Brasil, muitos jornalistas possuem uma formação católica e, ao cobrir religião, acabam aplicando um olhar dessa religião em suas pautas. Isso pode levar, por exemplo, à busca por uma única liderança para falar por religiões descentralizadas, como o protestantismo. Ou seja, há uma tentativa de enquadrar outras religiões nos moldes do catolicismo.
Outro exemplo citado por Cunha é o conteúdo jornalístico sobre o calendário religioso. “A cobertura de datas e eventos religiosos deve ser feita de maneira inclusiva, considerando as celebrações de diferentes tradições, como o Ramadã para a comunidade islâmica e as festas de matriz afro-brasileira, que muitas vezes são negligenciadas ou tratadas de forma superficial”. Ela destaca ainda que é um problema o fato de que, muitas vezes, datas como Páscoa e Natal sejam atribuídas exclusivamente aos católicos, quando na verdade também são celebradas por outros grupos cristãos.
A religião interligada na sociedade
A religião não é uma ilha; ela se relaciona com outros elementos da sociedade. Balloussier produz reportagens que ligam o campo religioso com o político. Além disso, uma pessoa não é apenas religiosa. Há outros aspectos de sua identidade que interferem, por exemplo, na escolha de um candidato. Nesse sentido, é preciso tomar cuidado ao afirmar que grupos religiosos, como os evangélicos, votam exclusivamente guiados pela orientação de um pastor. A repórter da Folha destaca que, em alguns casos, a cobertura sobre evangélicos carrega um viés aporofóbico e preconceituoso. “Os evangélicos são, sobretudo, mulheres negras e pobres, e muitas vezes vistos como bárbaros da civilização”.
Por muito tempo, a cobertura sobre religiões de matriz africana ficou restrita às páginas policiais, com a reprodução de estereótipos e sensacionalismo. Para Levy, ainda que o espaço para esse tema seja reduzido, muitos adeptos dessas religiões têm utilizado suas próprias mídias sociais para compartilhar vivências de axé, reflexões teológicas, mitologias e também para denunciar casos de intolerância e racismo religioso.
A jornalista diz que as religiões afro-brasileiras e seus membros ainda são alvos de ataques e violações de direitos. Por isso, a cobertura sobre o tema ganha qualidade quando jornalistas conseguem equilibrar pautas que denunciam crimes contra essa população com pautas positivas de valorização desse segmento religioso. Também é frutífero entender que os ataques a terreiros possuem uma dimensão racial. Por isso, especialistas e religiosos adotam o termo “racismo religioso” nesses casos.
Consulte fontes seguras
Seja por interesse próprio ou por determinação editorial, o jornalista que escreve sobre religião consegue buscar informações de qualidade e gratuitas em diferentes fontes. Conheça algumas delas: a plataforma Religião e Poder, do Iser, disponibiliza dados, artigos e análises sobre a relação entre religião e política no Brasil. O e-book Racismo Religioso, fruto de uma parceria entre Criola, Conectas e Portal Catarinas, reúne reflexões acadêmicas, jurídicas e religiosas de especialistas no tema. O Observatório Evangélico oferece análises e sugestões de pautas sobre o universo evangélico. Já o Bereia publica checagens de notícias sobre assuntos religiosos.
Conheça trabalhos para se inspirar
Quer conhecer o trabalho das jornalistas mencionadas? Leia o O púlpito: fé, poder e o Brasil dos evangélicos (Todavia), de Anna Virginia Balloussier; Dicionário Brasileiro de Comunicação e Religiões, de Magali Cunha; e Elemento transitório: caminho de volta para o mar, dissertação de mestrado de Bianca Levy.
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