Chico Felitti: o jornalista que desvendou o mistério da mulher da casa abandonada

Aug 15, 2022 em Jornalismo investigativo
Chico Felitti

Um podcast que alcançou 4 milhões de espectadores e aqueceu uma nova forma de consumir notícia no Brasil. Uma mulher que submeteu a empregada a condição análoga à escravidão nos Estados Unidos, há 20 anos, procurada pelo FBI e que hoje mora numa casa abandonada num bairro nobre de São Paulo. Coincidentemente, eu moro a 20 minutos de onde ocorreu o crime (a cidade de Gaithersburg, no estado de Maryland) e fui bombardeada por mensagens de amigos para também ouvir “A mulher da Casa Abandonada”.

Por trás desse fenômeno está Chico Felitti. Repórter e escritor de biografias como a de Elke Maravilha e investigações sobre João de Deus no livro “A Casa”. Guiado por instinto e muita curiosidade, ele conseguiu a história contada no podcast. E tanto quanto a casa e a mulher da casa, Felitti ganhou (mais) fama. A ponto de ter a voz reconhecida enquanto pedia um café numa padaria. A pessoa estava de costas, se virou e perguntou: “É você?”

Sim, é ele: roterista, investigador, entrevistador e narrador do podcast. Um profissional seguro de si, com maturidade suficiente para receber críticas, que respirou fundo nos momentos que foi provocado, que deixou escapar opiniões porque “racismo é algo que não se pode relativizar” e principalmente: que mostrou que o bom jornalismo se faz na base da p-e-r-s-i-s-t-ê-n-c-i-a. Quem embarcaria para os Estados Unidos sem ainda de ter uma fonte que bancasse a história?  Ele foi. Nesta entrevista ele fala sobre a investigação, seu modo de fazer podcast e futuros projetos. As respostas transcritas abaixo foram resumidas mas a entrevista na íntegra você pode assistir no vídeo aqui:

 

1. Qual a sua experiência anterior em relação a podcast?

Eu escuto podcast desde Serial. Eu morei nos Estados Unidos e peguei a onda americana, como o país inteiro, e enlouqueci. E queria muito fazer. E quando eu fiz o perfil “Fofão da Augusta: quem me chama assim não me conhece”. para o Buzzfeed do Brasil, eu fiz um podcast narrativo. Mas como ainda era algo raro no Brasil, ele não está nas plataformas de streaming. Ele é mais rudimentar tecnicamente e até narrativamente porque eu fiz tudo sozinho porque eu queria fazer. Mas acho ele super ok. Outro dia eu ouvi um episódio e falei: o som podia ser melhor, o texto podia ser um pouco mais redondo, mas para quem estava ali com 28 anos e nunca tinha feito e fez por onde, fiz no estúdio de música de um amigo. Foi total “do yourself”. Depois fiz duas temporadas de um podcast para o Spotfy que se chama “Além do Meme”, sobre pessoas que viralizam na internet. Fiz um podcast para o Fantástico da TV Globo “Isso está acontecendo”, que eram reportagens sobre assuntos pandêmicos, de comportamento. E fiz um podcast, um projeto menor, chamado “Muitas Vidas”, obituário de pessoas que morreram de Covid contado por parentes ou pessoas amadas.

2. Você desenvolveu um estilo muito particular no podcast “A mulher da casa abandonada”. Como foi isso?

Vem muito do que eu consumo. Eu gosto muito de jornalismo literário, sempre gostei. Acho que quando eu sentei pra fazer, eu já tinha absorvido pelo cansaço. Eu ouvia tanto “This American Life”, tanto podcast narrativo, que talvez eu tenha entendido ali os rudimentos ouvindo mesmo. Nunca estudei roteiro de podcast, nunca estudei escrita de podcast. Como eu nunca estudei escrita de não-ficção. Eu fui fazer isso depois de ter trabalhado em jornal diário a vida inteira que é um pouco diferente. A seriedade precisa ser a mesma, as ferramentas para investigar são as mesmas, mas o texto precisa ser um pouco diferente. Era o tipo de coisa que eu já estava em banho maria a tanto tempo, que saiu.

3. Você teve alguma crise ética a partir dos desdobramentos do podcast?

Teve essa questão do “podcast que revelou onde a casa é”.  Mas essa foi uma cautela que a gente teve. No podcast não tem o endereço da casa, a gente fala da praça Vilaboim que é ali perto mas em nenhum momento a gente não fala onde fica a casa exatamente, a gente não mostra imagem da casa, não mostra a cara da Margarida. Isso foi uma coisa pensada com a Folha de São Paulo. Justamente por uma cautela. Mas, considerando que é um assunto público que já tinha sido noticiado, se você for no Google você encontra. E daí todas as outras repercussões deram. A televisão mostrou desde o começo, vários veículos mostraram desde o começo. Então, ao mesmo tempo que a gente pensou, estava lá. Foi um caso muito noticiado no passado. O Fantástico chegou a mostrar a casa no ano 2000, filmou a Margarida dentro da casa. 

4. Mas você faria tudo igual?

Acho que, claro, com a cabeça de hoje se eu voltasse seis meses atrás e soubesse que a repercussão seria tão grande, algumas coisas eu teria mudado. Mas eu não tinha essa consciência, não tinha como ter. Eu acho que para a projeção que a gente tinha, para o mercado que existia até então, acho que foi justo, teve cautela. Mas claro, todo trabalho tem críticas, todo trabalho tem seu calcanhar de Aquiles. Esse trabalho teve críticas muito pertinentes, eu vou levar para os meus próximos trabalhos e norteá-los. Mas eu penso muito em condição objetiva de trabalho, sabe? Quanto de tempo e de verba que a gente teve pra fazer isso. Era uma equipe minúscula. Era literalmente eu, de bermuda e gravador. E aí quando a coisa fica muito grande, ela dá a ilusão de que ela foi um projeto hollywodiano. A Beatriz Trevisan que me ajudava com a transcrição de áudio, com alguns contatos, ela foi inclusive pra Minas Gerais entrevistar a Madalena Gordiano e tantas mulheres que falam de casos parecidos análogos à escravidão.

5. Sobre a sua relação com principal fonte: a mulher da casa abandonada, como foi a repercussão após a divulgação? Houve algum contato dela?

A gente se mandou mensagem antes da estreia do podcast. Ela me mandou mensagem no dia que o podcast estreou. E desde então eu tenho contato com a família dela. Quando a coisa foi ganhando corpo e uma dimensão que a gente não esperava era importante que a gente mantivesse contato com a família. A porta vai estar sempre aberta. É meu dever de ofício ter contato com Margarida Bonneti, caso ela queira tirar qualquer dúvida, isso em qualquer reportagem que eu faça. Não existe fim. Não existe terminou o nosso contato. Pra sempre eu tenho o dever de manter o contato com ela e com a família.

6. Como você conseguiu dar opiniões sem parecer intrusivo, sem mostrar julgamentos?

Eu acho que eu me contive muito. Toda opinião que tem ali foi a que eu não consegui controlar, mas que eu pensava também que eticamente cabia. Nos momentos que eu fui opinativo eu não queria ser mas daí escapou, mas também eu acho que é uma necessidade em 2022, sabe? O relativismo que existia no jornalismo nas últimas décadas não cabe mais. Não dá pra relativizar alguém que é contra a democracia, não dá pra relativizar alguém que é racista, misógino, LGBTfóbico, não dá. Não são dois lados equivalentes, não são. E eu fiz meu dever. Isso me dá muita tranquilidade. Eu fiquei dias acampado só pra contemplar o outro lado da história. Então meu dever está feito.

7. Quais seus truques para fazer o podcast e não perder áudio, por exemplo?

É super fácil, prático e eficiente. Um gravador profissional, eu uso um Zoom H4n. Mas eu uso um Iphone gravando o tempo inteiro, que é o meu backup. Por quê? Tecnologia, a coisa enguiça, problema com o cartão de memória que corrompe. Acontece com uma frequência maior do que eu gostaria. Então sempre tenha duas ou três gravações de um mesmo momento. Porque elas se perdem. Às vezes a qualidade de uma fica melhor do que a outra. Jogue tudo na nuvem assim que você chegar em casa. Porque gravador é roubado, se perde celular. Eu sei que é horrível, demora e não é prático, mas tudo precisa estar na internet, na nuvem. Eu fiz isso ontem. Cheguei em casa meia noite de uma entrevista exaustiva de cinco horas, eu só queria comer um pedaço de pizza e dormir. Mas o que eu fiz foi jogar 5 gigas de entrevista na nuvem.

8. Quais seus futuros projetos?

Eu lanço em novembro o livro “Rainhas da Noite”, que já saiu como áudio livro e está pronto. Que é a história de uma máfia no centro de São Paulo que existiu dos anos 70 aos anos 2000 comandada por 3 travestis que eram figuras únicas. Sai pela Companhia das Letras. E agora estou fazendo duas investigaçōes paralelas, não sei qual sai antes. Uma sobre um crime que aconteceu 20 anos atrás e nunca foi resolvido. Ele aconteceu numas rodas de elite que você não pensaria, então tem muito artista envolvido, tem gente da moda. E estou investigando uma seita, no interior, denúncias de um crime que está acontecendo nesse momento e essa entrevista de ontem foi isso. Devem virar podcast e livro. Eu penso em podcast primeiro porque estou apaixonado, né? Acho mágico, acho que o áudio tem uma riqueza.

9. Que conselho você dá para os novos jornalistas que estão chegando?

Confie no seu instinto. É uma coisa que a gente não ouve na escola. Às vezes a gente tem uma sensibilidade que é nossa e vai nos levar para algumas histórias que não parecem óbvias. Então se você não tem tanto interesse por Brasília e por fazer investigação sobre gasto de deputado e sobre o presidente da República, está tudo bem. Não é só isso. Às vezes você pode se interessar pela história da sua avó, que veio de algum outro lugar do mundo fugida e essa história pode ser frondosa e você pode se interessar por ela. E a partir disso, mais gente pode se interessar por ela. Eu acho que tem uma coisa de intuição que nasce com a gente e a gente precisa aprender a ouvir. Meus maiores trabalhos saíram da intuição.


Foto: Camila Svenson