O jornalismo que acabou com a falta de transparência das pensões no Brasil

نوشته Taís Seibt e Maria Vitória Ramos
Aug 8, 2021 در Jornalismo colaborativo
Caixa de tesouro lacrada

Depois de sucessivas cobranças à Controladoria-Geral da União (CGU) e duas denúncias da Fiquem Sabendo acatadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU), o governo federal finalmente publicou dados sobre pensões pagas a parentes de militares: cerca de R$ 19 bilhões líquidos só em 2020. Oculta há mais de 100 anos, essa informação só se tornou pública porque uma agência de dados independente pressiona autoridades há quase quatro anos, em um trabalho de equipe multidisciplinar, que mescla jornalismo, direito e ciência de dados.

Ao longo do mês de julho, os gastos bilionários principalmente com filhas e viúvas de militares, que são maioria entre pensionistas do Ministério da Defesa, estamparam manchetes nos principais jornais e portais de notícias do Brasil, como O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, El País, Agência Pública, Gazeta do Povo, Metrópoles e muitos outros. A seção =Igualdades, da revista piauí, destacou a discrepância entre os gastos com pensões em comparação a programas sociais: R$ 36 bilhões (entre pensionistas civis e militares) para meio milhão de pessoas, contra R$ 32 bilhões para 14,7 milhões de beneficiários do Bolsa Família. Isso só no ano passado.

A cobertura foi impulsionada por uma edição especial da Don’t LAI to me, newsletter da Fiquem Sabendo que alcança mais de 6 mil assinantes, principalmente jornalistas, em todo o país. A edição foi publicada em 28 de junho, horas depois da base de dados de pensões militares ser disponibilizada no Portal da Transparência pela primeira vez na história. 

[Leia mais: Fiquem Sabendo lança série de entrevistas sobre acesso à informação no Brasil e nos Estados Unidos]

 

Além de obrigar a abertura das bases de dados e divulgação quase imediata das informações recém publicadas, a agência mobilizou um pull de jornalistas para garantir a devida visibilidade para o caso. O grupo de repórteres foi criado ainda em 2020, para repercutir a primeira leva de dados disponibilizada pelo governo - os gastos com pensões pagas a dependentes de servidores públicos civis. Liderado pela diretora da Fiquem Sabendo, Maria Vitória Ramos, o pull é baseado na confiança e centrado na colaboração: os repórteres tiram dúvidas, ajudam uns aos outros e comunicam a linha de investigação que seguirão para garantir que todos tenham pautas exclusivas.

Colaboração multidisciplinar

Sem essa articulação, a publicidade dos gastos com pensões na imprensa seria mais complicada, pois a base de dados original está dividida em dezenas de pastas, cada uma com diversas planilhas de milhares de linhas, o que torna impraticável a análise em aplicativos de planilhas. Sem contar as inúmeras inconsistências na base de dados que poderiam levar a conclusões equivocadas quanto a valores pagos e quantidade de beneficiários, por exemplo. 

A checagem de registros duplicados, campos dúbios e valores discrepantes se estendeu por toda a semana seguinte à disponibilização da base, envolvendo três cientistas de dados: Bernardo Baron, da equipe da Fiquem Sabendo; Álvaro Justen, do Brasil.io; e Fernando Barbalho, que voluntariamente desenvolveu um aplicativo de consulta simplificada dos dados já em 2020. O trio analisou as bases com diferentes linguagens de programação, conforme a expertise de cada um, o que permitiu identificar diversas inconsistências e obter maior precisão na checagem. As ferramentas desenvolvidas foram disponibilizadas para jornalistas durante a apuração, assim como um aplicativo para facilitar a consulta pública das remunerações a pensionistas.

Ferramenta desenvolvida pelo Fiquem Sabendo
Ferramenta Metabase desenvolvida pela Fiquem Sabendo

 

Em paralelo, o advogado Bruno Morassutti, autor das duas denúncias ao TCU (a primeira delas, feita em 2017), ajudava a sanar dúvidas sobre a base legal dos proventos. Os problemas encontrados na base de dados foram listados e encaminhados para a CGU. Centralizando essa verificação, a Fiquem Sabendo prestou suporte a dezenas de repórteres que exploraram dados sobre esses pagamentos em busca de histórias, além de colaborar com o próprio governo para a melhoria das informações. 

Mobilização remota

Todo o processo ocorreu à distância, já que a equipe da Fiquem Sabendo trabalha remotamente desde março de 2020, devido à pandemia de Covid-19. A reportagem para a revista piauí, por exemplo, foi fechada em um documento compartilhado, com dezenas (talvez centenas) de comentários atribuindo revisões, além de um grupo temporário de WhatsApp para recados paralelos, envolvendo profissionais baseados em São Paulo, no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul. 

Equipe do Fiquem Sabendo
Equipe da Fiquem Sabendo

 

Não é simples manter a equipe engajada em meio aos desafios da cobertura da pandemia, que toma conta do noticiário há um ano e meio e também é o principal objeto de pedidos de informação na Fiquem Sabendo. A equipe atual da agência tem profissionais fixados de Porto Alegre a Manaus e até fora do país. A maioria nunca se encontrou pessoalmente ou conhece apenas parte dos colegas. A equipe completa, de fato, nunca esteve no mesmo local ao mesmo tempo. Todos os encontros são apenas por videoconferência até na hora do happy hour. 

[Leia mais: Don’t LAI to me: uma newsletter sobre Lei de Acesso à Informação no Brasil]

 

Nem mesmo a indicação para o Sigma Awards 2020, principal prêmio internacional em jornalismo de dados, com a revelação da primeira base de pensionistas em 2020, pôde ser comemorada de forma presencial. Quando a série histórica de 27 anos de pagamentos a dependentes de servidores civis foi publicada, em julho do ano passado, todos já estavam trabalhando de casa. O segundo semestre foi de sucessivas pressões à CGU, que a todo momento empurrava para frente o prazo de publicação dos dados sobre pensões militares. Até que uma nova denúncia foi apresentada ao TCU, resultando na conquista mais recente, quase um ano mais tarde. 

Prestação de contas na pandemia

A repercussão do caso na imprensa brasileira e nas redes sociais, onde os canais da Fiquem Sabendo experimentaram engajamento recorde graças a esse tema, mostram que a pressão da mídia faz diferença para tornar o governo mais transparente. A pandemia seria uma ótima oportunidade para se colocar esses dados de novo numa gaveta lacrada, mas a agência não tolerou as sucessivas prorrogações e seguiu cobrando. 

Em um período de ataques ao jornalismo, que enfrenta crise de financiamento e também de credibilidade, a divulgação dessas informações é uma conquista histórica não apenas pelo ineditismo, mas também pelo momento exato em que vêm à tona. Não bastasse o luto de mais de 500 mil famílias que perderam parentes para a Covid-19, a crise sanitária expôs como nunca a disparidade social existente no Brasil. 

Sempre se ouviu falar das pensões a filhas e viúvas de militares, mas não se sabia quanto era gasto e com quantas pessoas. Programas como Bolsa Família e o auxílio emergencial foram o mínimo para a sobrevivência de milhões de brasileiros durante a pandemia. Enquanto isso, alguns milhares acumulam benesses criadas no século passado em proporções muito maiores, e agora finalmente conhecidas. 

Mostramos no =igualdades da Piauí, por exemplo, que valor desembolsado pelo governo para pagar as superpensões - pessoas que acumulam mais de um benefício - seria suficiente para comprar 35,5 milhões de doses da vacina da Astrazeneca contra a Covid-19 e imunizar por completo quase toda a população da região Norte. 

Criando uma rede de colaboradores e mesclando expertises de diversas áreas, uma organização pequena e sem fins lucrativos pautou a grande mídia, levantando um debate público relevante, em meio a tantas discussões sobre reformas, privilégios e desigualdades. O impacto e a visibilidade deste trabalho só se tornaram possíveis pela aposta em um empreendimento jornalístico colaborativo e multidisciplinar, com bem menos recursos do que o desejável, como a maioria dos nativos digitais. Financiada por doações individuais, projetos especiais e uma vaquinha virtual contínua, a Fiquem Sabendo está pronta para crescer e buscar projetos ainda mais ambiciosos em 2022, com ajuda de seus apoiadores. 


Foto: Lena De Fanti no Unsplash

Taís Seibt é Jornalista na Fiquem Sabendo, criadora da Afonte Jornalismo de Dados, doutora em Comunicação pela UFRGS e professora da Unisinos.

Maria Vitória Ramos é cofundadora e diretora da Fiquem Sabendo. Foi repórter da Ponte Jornalismo e é autora de “Indigentes: o Estado que enterra sem avisar”.