Foram 570 crianças yanomamis mortas por causas evitáveis nos últimos quatro anos. Um povo coagido por garimpeiros, muitas vezes armados, e a denúncia da gravidez de 30 adolescentes estupradas. As fotos de crianças e adultos com desnutrição severa conseguiram, enfim, furar a bolha e ganhar a repercussão midiática que era urgente. Uma tragédia humanitária que causou surpresa em muita gente, mas as denúncias são antigas. E a pergunta ética que fica para os jornalistas é: por que demorou tanto para que as denúncias tivessem o engajamento necessário por parte da mídia?
Será que o jornalismo poderia ter denunciado de maneira mais efetiva essa tragédia? “Seria muito bom se os veículos hegemônicos, em nome da democracia e do interesse público como prioridade, ‘descessem do salto’ e pensassem até mesmo em formas de colaboração com organizações jornalísticas que têm a expertise, com quem está na linha de frente dos acontecimentos”, diz Débora Gallas, jornalista e pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental da UFRGS. Para ela, os yanomamis chegaram a ganhar algum espaço na grande mídia, principalmente pela atuação de profissionais como Sônia Bridi, mas destaca que a cobertura foi realizada, sobretudo, por veículos independentes, de menor alcance, como a Pública, a Amazônia Real e Sumaúma, que não tiveram o devido reconhecimento pelo trabalho arriscado realizado.
Crise nos critérios de noticiabilidade
Gallas acredita que o jornalismo, principalmente realizado pela mídia hegemônica, precisa rever seus critérios de noticiabilidade que são baseados em ineditismo e atualidade. “Tem-se a ideia de que retomar assuntos já noticiados é errado, e cria-se uma lógica competitiva de corrida por exclusivas e pelo furo. As pessoas ficam saturadas em um primeiro momento e depois, justamente por isso, perdem o interesse”. Ela afirma que essa lógica desmobiliza a sociedade para debates importantes, que quando são finalmente visibilizados, pode ser tarde demais.
“Muitas vezes a imprensa cobre assuntos quando eles dão engajamento e não porque eles são de extrema importância. Até mesmo em nível local há um certo desprezo pela Amazônia. E se dentro de uma mesma empresa jornalística, o local não vende para o nacional, a história não vinga", pondera o jornalista amazonense, Fred Santana, criador do Vocativo. Santana considera ser impossível não fazer um paralelo entre a tragédia yanomami e as mortes por falta de oxigênio em Manaus, no auge da pandemia, em janeiro de 2021. Para ele, ambas as denúncias demoraram a vingar, sendo evidente o descaso da cobertura com a região Amazônica. “Não faz muito tempo teve um Roda Viva com um senador do Amazonas e não havia nenhum jornalista do estado, nem mesmo da região norte".
Mais de 60 pedidos de ajuda
O Presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena do seu povo e também presidente da Associação Yanomami Urihi, Júnior Hekurari Yanomami, não desmerece o apoio que já teve tanto da imprensa local como nacional. Para ele, o grande problema foi o governo federal. “O governo não quis ajudar. Enquanto o governo Bolsonaro andava de motociata, o povo yanomami morria. Eles não nos ouviram. Foram mais de 60 pedidos de ajuda de várias instituições e organizações. A Funai, o Ibama, a Polícia Federal e o Exército têm que nos ajudar a fiscalizar a terra indígena”.
Para Ingrid Sateré-Mawé, assessora especial da "bancada do cocar" (parlamentares que representam os povos indígenas), a crise não foi abraçada de forma eficiente pela chamada “grande mídia”. Ela destaca que a situação piorou muito nos últimos seis anos, desde o governo Temer. “As denúncias foram mais pelos nossos meios de comunicação enquanto povos indígenas. O jornalismo só repercutiu o caso com a mudança no cenário político, quando o presidente Lula foi eleito, Sonia Guajajara foi indicada para ser ministra dos povos indígenas e quando Joenia Wapichana tornou presidente da Funai.”
O jornalista Tarisson Nawa alerta para o erro da grande mídia que tratou a situação como mais uma violência em meio a tantas já sofridas pelos povos indígenas, sem realizar a cobertura devida diante do grave caso de atentado aos direitos humanitários. Santana concorda: "A região dos yanomamis é de difícil acesso. É claro que no governo Bolsonaro era impossível ter apoio logístico dos órgãos públicos. Ainda assim acho que faltou um pouco mais de dedicação por parte dos jornalistas dos grandes veículos para encontrar formas de colocar o assunto em evidência".
“A mídia precisa deixar de nos tratar como ‘os Eles’”
Nawa afirma que as demandas dos povos indígenas precisam ser integradas as demandas da população, porque influenciam, inclusive, no cotidiano das pessoas. “A mídia precisa deixar de nos tratar como ‘os Eles’, ‘os distantes’. Nós, povos indígenas, apesar da diferença, apesar das demandas específicas, temos que ter a nossa demanda considerada como algo próximo da realidade da população brasileira”. E pontua que a necessidade de ar respirável, por exemplo, é uma demanda de todos e produto de uma proteção com a floresta que os indígenas dominam há milênios. “Nós nunca fomos um problema a ser resolvido. Não é ‘a questão indígena’, nós somos a solução”. Para o jornalista, infelizmente os fins econômicos das empresas de jornalismo, muitas vezes, superam os interesses de grupos sociais, como os dos povos indígenas.
O cenário de calamidade ter ganhado essa repercussão deixa o jornalista e professor universitário, Guilherme Curi, angustiado, mas não o surpreende. “A grande mídia é a voz do mercado, que na maioria das vezes explora a terra com consequências inimagináveis, desastrosas. Estamos nos aproximando ao ponto do não retorno, o aquecimento global, as toneladas de lixo produzidas diariamente, e continuamos tratando isso como uma mera crise. Quando não é. O que está em jogo é a própria humanidade”. Para Curi, as grandes corporações midiáticas continuam a reproduzir e produzir o mesmo discurso colonialista e violento desde o seu surgimento. “O genocídio dos yanomamis é a consequente aniquilação de humanos que não pertencem a lógica de acumulação. Como a grande mídia é parceira do capital, ela nunca irá tratar de forma direta, clara e devida as coisas como elas são”. E continua. “As grandes empresas de jornalismo agora cobrem esse genocídio por ser algo inevitável. Não havia mais como esconder”.
Foto: Junior Hekurari Yanomami