Em vigor desde 2020, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) tem gerado preocupação entre organizações jornalísticas e de transparência. O risco é de que órgãos governamentais usem essa norma para barrar a divulgação de dados públicos até então garantidos pela Lei de Acesso à Informação (LAI), que completou 10 anos em 2022. Preocupação intensificada frente ao contexto político em que o “sigilo de 100 anos” chegou a ser citado até mesmo nos debates entre candidatos a presidente do Brasil durante a campanha.
Na prática, exemplos recentes apontam retrocessos, como a ocultação de dados de filiados a partidos políticos e do detalhamento de bens declarados por candidatos às eleições deste ano nas bases do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), sob alegação da LGPD. Parte dos dados foi publicada pelo TSE após manifestação de entidades em defesa do interesse público das informações. Meses antes, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) também alegou adequação à LGPD para restringir a publicidade de microdados do Censo Escolar.
Isso para dar exemplos em que a transparência ativa - quando o governo disponibiliza dados sem que um cidadão tenha registrado um pedido de informação - afetou o acesso a bases de dados em nível federal, que geram maior repercussão nacional. Há incontáveis casos de impedimento no acesso a informações nos estados e municípios. A Assembleia Legislativa do Paraná, por exemplo, retirou do ar a prestação de contas dos deputados por conta da LGPD. O Tribunal de Contas paranaense pediu o retorno da divulgação.
“A nota fiscal é um documento empresarial, não é coberta pela LGPD. O cidadão comum que faz suas compras tem a informação sobre o que ele comprou protegida do acesso público, mas um deputado não”, analisa a jornalista Kátia Brembatti, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).
Além do vai-vem de retiradas e retornos de dados na transparência ativa, há também a queda de braço em pedidos e recursos na transparência passiva, que é quando o governo é questionado via LAI. Em relatório produzido pela agência de dados Fiquem Sabendo, especializada na lei de acesso, em parceria com Insper, apoio do Núcleo de Transparência da FGV e financiamento da Fundação Heinrich Böll, foi verificado que a cada quatro pedidos via LAI negados total ou parcialmente com o argumento da LGPD, um tem indícios de que a recusa não estava fundamentada.
Empecilho legitimado
Para Brembatti, a LGPD é o “empecilho do momento”. Ela relembra que, desde que a LAI existe, houve várias pequenas batalhas. Primeiro, era a falta de cultura da lei de acesso nos órgãos públicos, ninguém sabia para onde mandar o pedido, quem iria responder, não tinha sistema para registro. Também houve omissão dos órgãos de controle para forçar o cumprimento da lei, foram vários momentos de dificuldade. Agora, a LGPD está no foco. “Este é um empecilho complicado, porque tem uma legislação, é preocupante”, comenta.
O temor de responsabilização, já que a LGPD estabelece sanções com multas pesadas e tem uma Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) para fiscalizar, é uma das possibilidades para explicar o uso dessa nova lei para barrar o acesso a dados, na visão da presidente da Abraji. “Se a ANPD se manifestasse de forma muito enfática sobre a compatibilidade da LAI e da LGPD, talvez ficasse mais claro e iria diminuir esse receio”, analisa.
Identificação e impessoalidade
Em um debate promovido em Porto Alegre pelos cursos de Jornalismo e Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) em parceria com a Secretaria de Transparência e Controladoria do município, especialistas nas duas áreas debateram com representantes de controladorias a respeito da compatibilização de LAI e LGPD no que tange ao trabalho jornalístico. É consenso que não se aplica a restrição de informação para fins jornalísticos e de pesquisa, segundo a LGPD. Dessa forma, uma sugestão seria o jornalista se identificar ao solicitar informações aos órgãos públicos. Porém, a LAI prevê a impessoalidade, ou seja, o governo deve atender os cidadãos de forma isonômica, sem distinção.
“Faz parte do processo de educação da LAI que o jornalista não se identifique como jornalista, porque ela é uma lei para qualquer cidadão, que não tem acesso à assessoria de imprensa, e sim ao SIC (Serviço de Informação ao Cidadão)”, destaca Brembatti.
Além disso, muitos jornalistas preferem fazer seus pedidos de informação de forma anônima por proteção ao exercício profissional ou para evitar que a demanda seja encaminhada à assessoria de imprensa, onde os dados podem ser filtrados de forma mais seletiva.
“Em princípio, uma possibilidade para o jornalismo seria a divulgação de informações desidentificadas ou anonimizadas, como diz a lei”, sugere a jurista Têmis Linberger, que é professora da Unisinos e atua na 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que lida com questões de Direito Público.
Luciana Kräemer, Bruno Morassutti e Têmis Linberger em debate na Unisinos (Foto: Juliana Coin/Afonte Jornalismo de Dados)
Adaptação necessária
Na visão de Linberger, LAI e LGPD não são incompatíveis, tanto que normas similares existem em diversos países, mas o Brasil inverteu a ordem cronológica da edição das leis, o que seria uma explicação para o debate atual. Em países da Europa, leis de proteção de dados vêm evoluindo há mais de cinco décadas, enquanto as de acesso à informação são mais recentes, como é o caso da Espanha, em que a lei de acesso a dados públicos tem menos de 10 anos, sendo mais jovem do que a LAI brasileira.
O advogado Bruno Morassutti, que é cofundador da Fiquem Sabendo (FS) e também esteve no debate da Unisinos, foi menos enfático sobre a compatibilidade das duas legislações e salientou que é preciso acompanhar e pressionar para garantir que não haja retrocessos. Acionar dispositivos da própria legislação ao fazer pedidos de informação ao poder público e recorrer em casos de interpretação abusiva é uma das dicas para jornalistas evitarem que seu trabalho fique prejudicado com a LGPD.
Na WikiLAI, a FS disponibiliza modelos de pedidos e recursos elaborados por Morassutti para dar suporte ao trabalho de jornalistas que buscam informações do poder público usando a LAI.
A LGPD vem sendo discutida em exercícios experimentais na universidade, como exemplificou a professora de jornalismo investigativo da Unisinos, Luciana Kräemer: em uma reportagem que buscava levantar dados de estudantes trans em universidades do Rio Grande do Sul, a LGPD foi utilizada por diversas instituições como entrave.
Quanto mais atentos estiverem os repórteres, noticiando o eventual mau uso desse dispositivo legal para restringir informação, melhor será para que haja uma adaptação sem retrocessos na transparência.
Foto: Canva