Nas últimas décadas, a Venezuela tem sido vítima de um desmonte de seu ecossistema de mídia. O enfraquecimento das condições para a prática do jornalismo, seja na TV, no digital, impresso ou no rádio, é evidente e incontrolável sob a atual administração do governo venezuelano.
Em 2022, o ataque foi direcionado às rádios. Organizações de defesa da liberdade de expressão na Venezuela registraram o fechamento de pelo menos 95 estações de rádio. Os estados de Zulia, Tachira, Sucre e Falcón foram os mais afetados. O maior número de fechamentos foi relatado em setembro e outubro, com mais de 50 casos somente nesse período.
"Essa nova onda de fechamento de rádios mostra que o governo persiste com seu objetivo de adaptar o ecossistema de mídia aos seus interesses, agravando o déficit de informação que existe no país", disse ao LatAm Journalism Review (LJR) Daniela Alvarado Mejias, coordenadora de liberdade de informação no Instituto Prensa y Sociedad (Ipys).
O Ipys é uma organização a serviço dos jornalistas venezuelanos que documenta informações sobre o fechamento sistemático de veículos de imprensa desde 2005. "Esses fechamentos podem ter influência diante das possíveis eleições presidenciais [em 2024], quando vamos ter apenas cobertura submissa... A incapacidade de acessar espaços jornalísticos livres, que oferecem uma pluralidade e diversidade de vozes, impede que a informação esteja a serviço das pessoas e isso nega a elas o gozo de outros direitos humanos", diz Alvarado.
A entidade venezuelana a cargo de decidir sobre o fechamento das rádios é a Comissão Nacional de Telecomunicações (Conatel), que atua como a agência estatal venezuelana que regula, supervisiona e controla as telecomunicações.
A Conatel outorga concessões, associadas a uma autorização administrativa, para o uso e exploração do espectro de radiodifusão venezuelano, que é um bem de domínio público. "A Conatel não oferece informação pública ou atualizada sobre o status de suas concessões, que são negadas ou eliminadas sem procedimentos que garantam o processo adequado. Geralmente, esses fechamentos acontecem quando as rádios informam sobre algo que é crítico àqueles que têm o poder político oficial", de acordo com o site do veículo Espacio Público.
O estado de Zulia é o mais afetado
A estação Radiolandia 103.3 FM estava no ar no estado de Zulia, no oeste da Venezuela, desde 2009. Sua programação focava em música latina e gaitas [música tradicional do estado]. A rádio foi aberta sob o conceito de rádio comunitária [caracterizada pela participação ativa da comunidade na criação de conteúdo] e tinha uma licença provisória para funcionar.
De acordo com seu proprietário, a rádio já tinha recebido visitas técnicas da Conatel para avaliar os equipamentos, operações e programação. Além disso, por ser uma rádio comunitária, a emissora realizava trabalhos sociais em sua vizinhança, o que também era monitorado pela agência de telecomunicações. Por isso, eles estavam esperando pela outorga final da concessão.
Mas no dia 6 de setembro a rádio foi forçada a cortar a transmissão ao vivo e ameaçada de confisco do seu equipamento de trabalho se não cumprisse a ordem. A emissora não recebeu nenhum documento oficial ratificando o fechamento, por isso acredita que a decisão foi arbitrária.
"A rádio tinha três técnicos, um produtor e um diretor. Além disso, cada locutor ou produtor independente dependia de anúncios. Cerca de 18 pessoas ficaram sem emprego depois desse fechamento", disse à LJR José Luis Vargas, diretor e proprietário da Radiolandia 103.3 FM em Maracaibo
De acordo com o Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Imprensa da Venezuela (SNTP na sigla em espanhol), em todos os casos de fechamentos relatados em 2022 eram evidentes a ausência de um processo adequado e do direito à defesa. Não houve documentos escritos, citações ou mandados especificando instruções ou detalhando razões para o fechamento. Além disso, quando qualquer funcionário do governo visita as rádios, eles o fazem sem identificação adequada e dão ordens verbalmente. De acordo com um relatório do SNTP, em 80% dos fechamentos, a Conatel dá instruções por telefone.
Zulia foi o estado venezuelano com o maior número de fechamentos de rádios no país em 2022. Pelo menos 30 rádios foram fechadas no estado. Algumas delas: Sensacional Stereo 88.5 FM, Zulia Mía 91.3 FM, Kp 92.9 FM, Refugio 94.3 FM, Palabra 97.3 FM, High Class 98.1 FM, Destino 98.3 FM, Radiolandia 103.3 FM e Río Stereo 107.7 FM, dentre outras.
Enfraquecimento da liberdade de informação
Fechar rádios é uma medida que ignora o comprometimento feito pelo governo venezuelano em fazer progressos para atingir os objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU. De acordo com o Plano Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, a Venezuela se comprometeu a "continuar promovendo uma nova política de comunicação nas Américas, com ênfase especial em novos sistemas regionais de informação e de mídia, e na promoção de novas ferramentas de comunicação".
No entanto, todas as estações de rádio fechadas neste ano estão localizadas em regiões fora da capital venezuelana e, em muitos casos, em áreas onde há poucas fontes de informação.
Enquanto isso, representantes do governo venezuelano negaram publicamente que as medidas de fechamento administrativo ordenadas pela Conatel representam uma violação à liberdade de expressão na Venezuela. Além disso, eles dizem que o fechamento dessas rádios se deve a problemas com as concessões.
De acordo com Álvarado, ao outorgar concessões, a Conatel o fez conforme sua vontade e o processo não foi transparente. "Isso fez com que a concessão da maioria das emissoras expirasse, apesar de elas terem enviado a documentação exigida. Mesmo assim, elas não receberam resposta às suas solicitações. Isso as colocou em uma situação na qual estão constantemente sob o risco de ter sua licença revogada e seu sinal suspenso indefinidamente."
Foi isso que aconteceu na maioria dos casos relatados este ano. Por exemplo, as rádios 105.3 FM e Play Top 91.5 FM, ambas de propriedade do circuito Unión Radio em Carabobo, na região central do país, foram tiradas do ar no último dia 14 de outubro sob alegação de concessão expirada.
"Estamos em luto pelo fechamento das rádios. No meu caso, essa é a terceira vez que passo por essa experiência dolorosa: RCTV, El Carabobeño e agora a Unión Radio Noticias Valencia 105.3 FM, onde eu tinha o programa Lo de Hoy. Não tenho palavras para expressar essa desolação", disse a jornalista Dhameliz Díaz no Twitter. Conforme explicou em seu post, ela foi forçada a parar de trabalhar em vários veículos devido à censura: o fechamento do canal RCTV em 2007, o cancelamento da versão impressa do jornal El Carabobeño em 2016 e agora o fechamento da rádio Unión Radio Noticias em Carabobo.
"Essas medidas arbitrárias deterioram seriamente o direito dos cidadãos de saber. Isso significa que a sociedade venezuelana tem poucos espaços para exigir, para exercer plenamente seus direitos humanos", diz Álvarado, ao comentar sobre o que o fechamento das rádios significa para a liberdade de informação. "As rádios de notícias são as que mais têm alcance no país. Nós temos uma população que não está ciente de informações que a afetam, o que é necessário para a opinião pública e para a tomada de decisão com consciência e responsabilidade."
Este artigo foi originalmente publicado pela LatAm Journalism Review e republicado aqui com permissão.
Foto por Drew Patrick Miller via Unsplash.