O texto completo foi publicado pela Lupa no dia 11 de julho de 2024. E você pode conferir aqui, inclusive com os prints da investigação. O texto a seguir foi autorizado pela Lupa a ser publicado pela IJNet e é uma versão menor do original.
A Lupa foi um dos alvos de uma ação clandestina a partir do uso ilegal de sistemas da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). A medida teria sido feita com o intuito de monitorar e coordenar ataques nas redes sociais, apontou investigação da Polícia Federal (PF).
O episódio veio a público após o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, retirar o sigilo da investigação. Isso ocorreu após a PF realizar, a 4ª fase da Operação Última Milha, visando desarticular uma organização criminosa que fazia o monitoramento ilegal de autoridades públicas e jornalistas e produzia notícias falsas com uso da estrutura da Abin entre 2019 e 2022.
Cinco mandados de prisão preventiva e sete mandados de busca e apreensão foram expedidos para a operação. Entre as autoridades monitoradas, de acordo com a investigação, estão os ministros do STF Alexandre de Moraes, Dias Toffoli, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux; o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PL-AL); além de deputados federais, senadores, servidores federais e jornalistas.
A Lupa é mencionada na íntegra da decisão proferida por Moraes, em um trecho em que o ministro cita destaque feito pela Procuradoria-Geral da República de que "inúmeras" ações clandestinas foram feitas "em completo desvio da finalidade institucional da Abin" — um dos registros catalogados cita "ação clandestina agência de checagem: 'Aos Fatos' e 'Lupa'".
"É inaceitável que sistemas operados por uma organização de Estado como a Abin tenham sido usados de forma clandestina contra a Lupa e contra a imprensa. Também é inaceitável não termos informação detalhada sobre a extensão desse uso e quais dados sobre a nossa organização e os nossos colaboradores estiveram e estão em risco. Buscamos legalmente o acesso a essas informações. Sabemos que esse tipo de ataque só se dá porque nosso jornalismo é relevante, responsável e de extrema credibilidade, o que continuará sendo, mesmo sob risco", afirma Natália Leal, diretora-executiva da Lupa.
“Nos solidarizamos com os demais brasileiros que foram indevidamente espionados”, complementa Cristina Tardáguila, fundadora da Lupa.
Do monitoramento a fakes e ataques
Dois servidores cedidos à Abin foram apontados como coordenadores da coleta ilegal de informações: o policial federal Marcelo Bormevet e o sargento do Exército Giancarlo Gomes Rodrigues.
Segundo a investigação da PF, a 'Abin paralela' não só monitorou como também atuou na criação de perfis falsos e na divulgação de fakes. Também “acessou ilegalmente computadores, aparelhos de telefonia e infraestrutura de telecomunicações para monitorar pessoas e agentes públicos".
A decisão do ministro Alexandre de Moraes destaca que "as investigações evidenciaram a ocorrência de inúmeras ações clandestinas no período compreendido entre 2019 até 2022 e indicaram que os recursos humanos e técnicos empregados pela estrutura paralela valiam-se de sistemas oficiais e clandestinos para obtenção dos dados necessários para os seus interesses".
Moraes ainda menciona trecho da representação da PF citando que "a tarefa da célula de contrainteligência era produzir desinformação para atacar adversários e instituições" e que as campanhas de desinformação "resultam em efeitos deletérios à honra objetiva dos opositores", pois é "praticamente impossível apagar todas as mazelas produzidas" pela organização criminosa.
Investigações e ataques a agências de checagem
Em relatório feito pela Divisão de Operações de Inteligência Cibernética, a Polícia Federal afirma que há provas de que houve atuação de servidores da Presidência da República, à época sob gestão de Jair Bolsonaro, para usar a estrutura paralela da Abin para investigar agências de checagem, entre elas a Lupa (página 97). Entre as provas, está a interlocução entre o sargento do Exército Giancarlo Gomes Rodrigues e outras pessoas, na qual o militar diz estar "fazendo uma pesquisa em cima dessas agências de checagem que ficam detonando tudo que o PR [Jair Bolsonaro] faz. Já fiz da Aos Fatos e agora estou fazendo da agência Lupa”.
Giancarlo diz ainda, sem indicar detalhes ou provas, que descobriu que "dois checadores que trabalham lá receberam auxílio emergencial de forma irregular". Nos documentos divulgados, no entanto, não há qualquer evidência de que isso seja verdade.
Na sequência, Giancarlo afirma que vai “levantar geral primeiro, senão vão excluir as contas com viés left [de esquerda]. Já tem até jornal para publicar e o cara de presidência disse que vai tentar levar ao PR[Jair Bolsonaro] para ele falar na live”.
Governo usava influenciadores para propagar dossiê feito pela 'Abin paralela'
A representação da PF mostra interações nas redes sociais entre dois perfis apontados pela corporação como “vetores de propagação para o escoamento” da ação clandestina contra agências de checagem: o empresário e gestor de produção industrial Richard Pozzer, investigado na CPI da Covid por disseminar fake news; e o jornalista e youtuber Kim D. Paim.
De acordo com a investigação, os perfis eram cooptados e municiados pelo núcleo de estrutura paralela do governo e serviam para distanciar as publicações desinformativas dos verdadeiros beneficiados por ela.
Em uma publicação, Pozzer diz que "um grande amigo fez um levantamento completo sobre agências de checagem e o viés ideológico que está por trás dos checadores". Ele ainda diz que o dossiê foi enviado para "muitos", mas falta o youtuber Kim D. Paim receber. Em seguida, Paim responde e pede que o documento seja enviado por DM.
Difusão de desinformação como estratégia
Segundo investigação da PF, a difusão de desinformação em grupos infiltrados pela estrutura paralela da Abin "era o estratagema para distanciar os responsáveis e beneficiários de eventual responsabilidade penal”.
Como exemplos, o relatório cita um conteúdo desinformativo relacionado ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli. Em uma conversa entre servidores ligados à estrutura paralela da Abin, o policial federal Bormevet sugere ao militar Giancarlo Rodrigues relacionar o então diretor-geral da Polícia Federal, Paulo Maiurino, ao ex-governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel — e como sendo um nome supostamente indicado por Toffoli. O motivo, segundo a PF, seria “desestabilizar a credibilidade das instituições” e fazer ataques a opositores.
Na conversa, Bormevet pede que busque “em fonte aberta relações políticas deste novo DG [diretor-geral] da PF [Polícia Federal]”. Depois, manda soltar em grupos de amigos dizendo que “o cara é zero de currículo e seria indicação do Toffoli”.
Núcleo de milícias digitais
A Procuradoria-Geral da República (PGR), em parecer sobre o caso, afirmou que a investigação da PF tem como foco "a existência de organização responsável por ataques sistemáticos aos seus adversários, ao sistema eleitoral e às instituições públicas, por meio da obtenção clandestina de dados sensíveis e propagação de notícias falsas".
O parecer cita ainda que a estrutura criminosa seria composta por policiais federais cedidos à Abin e oficiais de inteligência que atuavam sob o comando do então diretor-geral Alexandre Ramagem. "O núcleo atuava como verdadeira central de contrainteligência da organização criminosa que, por meio dos recursos e ferramentas de pesquisa da Abin, produzia desinformação contra seus opositores".
Essa ação clandestina foi descoberta, de acordo com a PGR, a partir da identificação de desvios no uso da aplicação First Mile, que permite acesso ao serviço de localização georreferenciada de dispositivos móveis em tempo real. "A ferramenta era utilizada para obter a localização dos alvos que, de alguma forma, contrariavam os interesses da organização criminosa".
A PGR também identificou coincidências entre as datas das pesquisas feitas no First Mile e diálogos entre Bormevet e Rodrigues. "Apurou-se que o material reunido era repassado a vetores de propagação em redes sociais (perfis falsos e perfis cooptados) que formavam o núcleo de milícias digitais da organização criminosa".
Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil