Jornalismo sem fins lucrativos ganha espaço no cenário brasileiro

Автор Rafael Gloria
Jun 11, 2023 в Inovação da mídia
Arte

A história do jornalismo é perpassada por crises que acabam transformando o setor. Com isso, novos modos de financiar o setor foram surgindo. Entre eles, há a utilização do modelo sem fins lucrativos no jornalismo, que tem em seu cerne a missão do interesse público, social e a transparência. Ainda há um bom caminho para o formato percorrer no Brasil, mas iniciativas de sucesso já começam a aparecer.

A Associação de Jornalismo Digital (Ajor), por exemplo, tem em seu quadro, atualmente, 41 organizações sem fins lucrativos, de um universo de 110 associadas. Veículos consagrados como a Agência Pública e a Repórter Brasil, por exemplo, são referências que utilizam o modelo no Brasil. Conversamos com outras organizações para entender os principais desafios e os benefícios do formato. 

Jornalismo posicionado

João Peres, editor e um dos fundadores da Joio e o Trigo, organização que faz jornalismo investigativo sobre alimentação, saúde e poder, diz que eles nasceram como uma empresa limitada, mas logo no segundo ano passaram ao formato sem fins lucrativos. “Concordamos que esse, de fato, era o que mais se aproximava ao nosso momento, e foi importante para estruturar a nossa missão e o nosso lugar no jornalismo, que consideramos como um jornalismo posicionado”, diz. Eles alinharam a existência jurídica ao fazer jornalístico. "Filosoficamente, não entendemos o jornalismo como uma atividade que deva primar pelo lucro: pelo contrário, um jornalismo não corporativo e não lucrativo é essencial para a defesa do interesse público”, acredita.

Paulo Werneck, diretor da Revista Quatro Cinco Um, que cobre literatura e que também adotou o modelo sem fins lucrativos, concorda que o formato reitera o compromisso do jornalismo com o interesse público. “Acredito que o projeto jornalístico sem fins lucrativos tem o dever moral de, por exemplo, divulgar sua audiência, que o projeto empresarial não tem”, diz. Werneck também lembra da dificuldade que empresas jornalísticas têm em se manter em um modelo lucrativo. “Ainda mais no jornalismo cultural, que é a nossa praia, e que as resenhas literárias, que são nosso formato central, teriam pouquíssimas chances de ‘dar lucro’. Isso é risível", aponta Werneck. "Crítica de livros não é um business. O modelo sem fins lucrativos se mostrou ideal para dar sustentabilidade e perenidade”.

Para o professor de jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso e co-fundador do coletivo Jornalistas Livres, Vinicius Guedes, o formato está em crescimento no Brasil. “Há uma grande transformação no mercado jornalístico nos últimos anos. A imprensa tradicional perdeu espaço para iniciativas digitais menores e mais focadas, e também devido a uma perda de credibilidade muito por conta de erros próprios cometidos e de ataques da extrema direita”, diz. Segundo Guedes, com isso também se abriu espaço para as ONGs desenvolverem suas próprias iniciativas jornalísticas ou se aproximarem de veículos com expertise para cobrir as áreas de seu interesse.  

Se é "sem fins lucrativos", como se sustenta?

 Apesar do jornalismo sem fins lucrativos não ser novo, é no século XXI que ele passa a se difundir mais como reação às dificuldades enfrentadas pela mídia tradicional e comercial. De modo geral, no Brasil, o jornalismo sem fins lucrativos vive de uma diversidade de fontes de receita, sendo que as mais constantes são as que vêm de editais e de filantropia. “No nosso caso, a maior parte da receita vem de fundações e institutos sem fins lucrativos. São doações irrestritas para a realização de investigações jornalísticas", explica Peres. "Participamos de alguns editais, mas essa sempre foi uma fonte de receita minoritária. E temos um programa de membros que busca trazer uma receita adicional”.

Já Werneck traz uma observação interessante: a de que é preciso construir mecanismos de financiamento e desenvolvimento específico para o modelo no Brasil. “Vejo que no país há projetos nonprofit duradouros como a Agência Mural, O Eco, Fiquem Sabendo, entre outros, e que atuam em coberturas muito relevantes das quais a dita grande imprensa vem se ausentando. A adesão da Revista Piauí ao modelo nonprofit me parece um sinal muito positivo”, acredita. 

Seriedade nas movimentações

As exigências burocráticas e legais que o formato exige são alguns cuidados necessários para os gestores que decidem seguir esse modelo. “Isso demanda acompanhar de perto o trabalho de contadores e advogados, porque um problema relacionado à pessoa jurídica pode representar o fim da própria organização ou uma enorme dor de cabeça”, diz Peres. É preciso seguir uma governança mais exigente e documentar as movimentações. “Não pode retirar eventuais excedentes financeiros. Para mim isso é uma vantagem, traz um padrão de organização e previsibilidade fundamental para o sucesso do projeto. E sucesso significa ter público e perenidade”, completa Werneck. 

Uma possível desvantagem do formato é uma maior vulnerabilidade ao autoritarismo governamental. Políticas públicas, como a lei de incentivo à cultura, por exemplo, poderiam ser adaptadas para financiar jornalismo independente ou sem fins lucrativos, mas a discussão ainda é rasa, ou nula. 


Foto/Arte: Canva.