O poder da ilustração enquanto notícia

Jun 5, 2023 em Jornalismo multimídia
Ilustração

Em dezembro de 1991, Joe Sacco desembarcou no Oriente Médio a fim de ver de perto o conflito que se estendia há anos entre palestinos e israelenses. O fato de ter decidido fazer a viagem de forma independente fez com que ele se hospedasse em locais mais baratos para economizar em sua jornada. Essa decisão aparentemente simples levou-o a enxergar de perto as pessoas que viviam aquele conflito. Mais tarde, essas pessoas se tornaram personagens de seu livro de jornalismo em quadrinhos: Palestina. Sacco tornou-se uma referência em ilustração para narrar fatos e abriu portas para muitos outros profissionais.

De acordo com o livro Dicionário de Comunicação, de Carlos Alberto Rabaça e Gustavo Barbosa, a ilustração jornalística pode ser, em alguns casos, mais importante do que o texto escrito, ou mesmo prescindir de texto. Essa definição fundamenta a importância da ilustração no universo do jornalismo e ajuda a evitar o conceito de que seja acessório ou dispensável.

Ilustrar requer pesquisar

A produção de ilustrações requer pesquisa, organização e empenho. “Quase 70% do tempo é pesquisa. Eu tenho uma lousa gigante onde vou colocando as informações em post-its e criando um mapa para poder entender como o leitor vai seguir a história”, conta a jornalista, quadrinista e ilustradora, Cecília Marins.

Marins sempre gostou de desenhar, mas só pensou nisso como profissão no último ano do curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo (SP), quando viu uma reportagem em quadrinhos como Trabalho de Conclusão de Curso. “Eu achei aquilo um estrondo”, lembra. A possibilidade abriu novos horizontes e ela acabou também apresentando uma reportagem em quadrinhos como trabalho final da graduação: Parque das Luzes é o resultado de um ano de pesquisas e entrevistas com mulheres em situação de prostituição no parque mais antigo de São Paulo. Desde então ela não parou mais.

Marins ganhou o prêmio de melhor reportagem sobre ciência e saúde de 2021, da International Center for Journalism, pelo Favelas vs. COVID-19, e foi indicada ao Emmy Internacional de Melhor Programação Artística pelo documentário AmarElo – É Tudo Pra Ontem. “É muito interessante você prestar atenção nos detalhes. No documentário, eu desenhei os fundadores do Movimento Negro Unificado. Se você vai desenhar alguém dos anos 1960, por exemplo, procure a roupa, para que a pessoa exposta ao desenho possa ter toda a informação possível”, explica.

A ilustração como recurso da verdade

As ilustrações já foram utilizadas apenas para retratar a realidade: desenhos de plantas estampavam livros científicos e figuras de paisagens relatavam o que existia em terras distantes. Ilustradores também eram contratados para mostrar em imagens o que não era acessível ao público, como guerras e julgamentos. Com a popularização da fotografia, porém, as pessoas começaram a “enxergar realidade” apenas em fotos e vídeos.

A jornalista e quadrinista Gabriela Güllich acredita que esse pensamento vem de uma confusão entre veracidade e verdade. “A gente foi treinado a pensar que o que está na foto é verdade por estar vendo uma pessoa de carne e osso. Enquanto na ilustração a gente pensa ‘foi alguém que fez’", explica Güllich. "A gente esquece que também existe alguém filmando e fotografando”, argumenta. 

Arte gráfica
Página da HQ-reportagem São Francisco. Arte: Gabriela Güllich

 

Güllich viu a chance de transformar o hobby do desenho em profissão durante a faculdade de Jornalismo na Universidade Federal da Paraíba, em João Pessoa (PB), quando conheceu o trabalho de Joe Sacco (citado justamente no início desta reportagem). “A partir daí eu direcionei toda a minha pesquisa acadêmica para a comunicação visual”, conta. Em 2019, Gabriella publicou o livro São Francisco, em parceria com o fotógrafo João Velozo. A obra rendeu o Troféu HQMix 2020 na categoria Publicação Independente de autor. Atualmente, Güllich trabalha como infografista e ilustradora do portal ((o))eco.

Desafios na era digital

Diante da crescente popularidade das redes sociais, as mídias jornalísticas têm adotado diferentes estratégias para manter a audiência. “Temos uma matéria publicada, mas logo abaixo no feed tem um vídeo de capivaras tomando banho. O que chama mais a atenção: um bloco de texto que comenta algo sobre a política ou um vídeo de capivaras tomando banho?”, pergunta o quadrinista e repórter Luiz Fernando Menezes.

O trabalho de Menezes na conclusão do curso de Jornalismo foi um livro em quadrinhos chamado Socorro! Polícia!, feito em parceria com Amanda Ribeiro, que aborda a violência praticada e sofrida pelos policiais militares. Hoje, ele trabalha no site de jornalismo Aos Fatos, uma organização sem fins lucrativos que se dedica a verificar a veracidade de informações e declarações públicas. "A imagem tem um poder de síntese que supera outros meios, capaz de transmitir a ideia de maneira clara e impactante”, defende Menezes.

Capa livro
Capa do livro de Luiz Fernando Menezes e Amanda Ribeiro

Sintetizar conceitos e exagerar pontos para chamar atenção podem enviesar os fatos. No entanto, Güllich afirma que estes equívocos não estão restritos à ilustração: “Acho que qualquer formato pode ter viés. O fato de escolher falar sobre algo já é parcialidade. A ilustração é apenas outra ferramenta. Vai depender da credibilidade e compromisso do profissional e não do tipo de mídia.”

Assim como os jornalistas, os ilustradores têm a responsabilidade de transmitir a mensagem de maneira clara e precisa para garantir a credibilidade e a confiança dos leitores. “É preciso ter bastante ética porque eu tenho um poder muito grande nas mãos”, afirma Marins.


Foto capa: Ilustração de Cecília Marins para o Dia Nacional da Imunização, em parceria com a ONU Brasil.