A rotina de jornalista e o cuidado dos filhos

Apr 2, 2023 em Diversos
Criança colo mãe

Troca de fraldas, amamentação, madrugadas em claro e uma onda de descobertas repleta de afetos e desafios. A chegada de um bebê vem carregada de tarefas que parecem não se encaixar numa sociedade em que a carreira profissional é imperativo na vida de uma pessoa adulta. Para os jornalistas que vivem uma rotina dinâmica, equilibrar os cuidados com a família e o trabalho pode ser um grande desafio.

Mistura de sentimentos 

A jornalista Melina Cardoso, produtora e audiodescritora na TV Folha, do jornal Folha de São Paulo, teve uma gravidez bem planejada. Apesar dos estudos sobre parto e maternidade, o nascimento da filha Helena superou tudo aquilo que imaginava. “A Helena foi um mergulho que quebrou no meio todas as expectativas de tudo que eu tinha lido. Foi uma potência!”, conta.

Com direito à licença de 4 meses, Cardoso juntou férias e horas extras para ampliar sua licença-maternidade para 7 meses. Mesmo assim, voltar ao trabalho foi uma mistura de sentimentos. “Na primeira semana eu trabalhei chorando. Sentia que estava sendo ruim com ela. Mas foi uma glória voltar, ver gente e falar de outras coisas que não cocô, cólica e fralda”.

A maternidade fez Cardoso se envolver com pautas afins. Ela assumiu o blog Maternar  e depois a produção do podcast 40 semanas, que acompanhou a gestação de três mulheres.  “Eu passei a propor mais pautas com relação à maternidade. Às vezes a gente consegue dar voz e pontuar problemas que parecem normalizados. Com o blog, posso ampliar debates, romper preconceitos. Me trouxe sensibilidade”, diz ela.

Adaptações na rotina de trabalho

Enquanto a lei brasileira prevê uma licença-maternidade de 4 meses para mulheres CLT, autônomas, microempreendedoras individuais, os homens têm direito apenas a 5 dias de afastamento. Essa disparidade fez com que o ilustrador William Mur tomasse uma decisão importante. A disparidade entre homens e mulheres fez com que o ilustrador William Mur tomasse uma decisão importante. “Quando eu tive o primeiro filho, fui trabalhar alguns meses no [jornal] Estadão. Eu conseguia trabalhar, quem não dava conta era minha esposa, que não tinha família próxima para ajudar. Foi brutal pra ela”, conta Mur. “Eu falei para as pessoas que não dava pra continuar. Alguns falaram: vai passar, a mãe vai dar conta. Parecia um fardo que só a mãe tinha que carregar. Então decidi sair desse emprego”.

 “Equilíbrio não existe. Quem é mais regrado na vida, sofre mais com o furacão que é um filho. Você sempre tá fazendo mal duas coisas ao mesmo tempo”, conta Mur, dando risadas. Hoje, ele trabalha como freelancer e professor de desenho e narrativa visual na Faculdade Méliès, em São Paulo, com mais flexibilidade para cuidar dos filhos.

Mudança de carreira

Já a jornalista Fernanda Alvarenga enfrentou dificuldades para adaptar os horários do trabalho como repórter da Rede Globo, em Brasília, e a chegada do primeiro filho Gael. “O que eu mais sofria era que o meu horário era das 14 às 22 horas. Eu chegava em casa às 22h30 e não colocava meu filho pra dormir”, conta Alvarenga, que sonhava em ter mais autonomia.

Oito anos depois, com a chegada de Nina, sua segunda filha, ela decidiu mudar de profissão. Em setembro de 2017 se tornou empresária, quando abriu a Mãedoteca Pic Nic, que funciona como espaço para festas e eventos infantis. “O que mais me atraiu nessa mudança de área foi ter autonomia sobre o meu tempo”, argumenta. Em março deste ano ela inaugurou uma nova unidade chamada Pic Jump.

Falta de rede de apoio

Contar com uma rede de apoio, uma equipe de trabalho colaborativa e horários que se adaptem às novas demandas são detalhes que fazem a diferença. “A gente esquematiza por semana. É uma loucura, mas é preciso organização”, conta Cardoso que atualmente tem uma filha de 6 anos e dois gêmeos de 2 anos. Ela afirma que se sente segura em contar com chefes e colegas de trabalho que entendem as dificuldades que a maternidade traz.

Mas a jornalista sergipana Aline Braga não teve a mesma sorte. Ela conta que o que mais pesou foi justamente não ter uma rede de apoio. Ela descobriu a gravidez ao mesmo tempo em que foi cursar Comunicação Social na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, em 2003. Braga passou a faculdade e os primeiros anos da vida do filho Ethan sem a presença dos familiares. A rotina era intensa: “Eu deixava o meu filho bem cedo no berçário, estudava na faculdade pela manhã, fazia o estágio à tarde, pegava no berçário no fim do dia, fazia comida e brincava com ele. 20h30 ele dormia e eu estudava até uma hora da manhã. Quando eu me formei, o que mudou era que ao invés dos estudos eu trabalhava o dia todo.”

Após o filho pegar uma grave pneumonia, Braga decidiu voltar para sua cidade natal, Aracaju. “A diferença da vida aqui é muito grande por causa da família”, conta. Alguns anos depois, ela passou em um concurso e hoje trabalha como apresentadora dos programas Elas no Comando e Congresso em Pauta, da TV Alese, da Assembleia Legislativa de Sergipe.

Salário que não sustenta a família

Os problemas podem parecer individuais, mas os profissionais relatam preocupações comuns. Um dos desafios é a remuneração. “A condição real do jornalista sempre me preocupou. Eu tenho filho, então meu dinheiro não é só pra mim. E o que se paga para um jornalista às vezes não dá nem para ele próprio”, reflete Braga, que se sente agora mais estável como servidora pública.

Mur também vive essa angústia. “Eu tenho menos horários preenchidos do que quando eu trabalhava no jornal. Por conta disso, eu não ganho tão bem quanto na redação", diz ele. "Agora que meus filhos vão começar na escola, minha expectativa é pegar mais freelas ou aulas, para complementar a renda”. A perda em rendimentos é compensada com as horas para se dedicar aos filhos e aos estudos, mas ele deixa claro que não é fácil: “Não é um jogo só de ganhos”.

Direitos trabalhistas & filhos

Outra dificuldade diz respeito ao horário: além de cargas horárias que frequentemente ultrapassam o período pré-estipulado, muitos jornalistas fazem plantão. “Com um filho isso acaba se tornando um complicador, porque você precisa pagar alguém pra ficar com ele e acaba gastando o dinheiro a mais que você talvez receba pelo plantão”, explica Braga.

Infelizmente ainda existe uma falsa associação da maternidade à falta de comprometimento e eficiência no trabalho. Hoje, trabalhando em outra área, Alvarenga sugere que em uma jornada de 8 horas, por exemplo, duas dessas horas poderiam ser cumpridas em outro local e num horário mais favorável. “De repente, naquele horário em que ela estaria na empresa, ela vai buscar o filho na escola. Depois vai acordar às 6 da manhã e fazer o trabalho que ficou faltando”, exemplifica. “Ainda mais agora depois da pandemia, que muita gente viu como o home office também pode ser produtivo”.

 “Não acho que a gente tenha dificuldades maiores que outras profissões. Acho que a gente se acha especial e por isso nossos sindicatos estão esvaziados. Quem realmente paga auxílio-creche? Quantos locais de trabalho não pagam a hora extra de jornalistas? São coisas básicas”, questiona Braga. “É importante as mães e os pais se unirem e levarem as demandas para o RH, para a chefia", considera Cardoso. "Não é a criança que está invadindo o espaço do trabalho, é o contrário”. Ela é prova disso: quando ainda amamentava, ela e outras colegas pediram um espaço reservado na empresa para extrair o leite. E foram atendidas.


Foto: Canva