Recomendações para investigar assassinatos extrajudiciais

por Eunice Au
May 8, 2019 em Jornalismo investigativo
Investigando

O assassinato extrajudicial --assassinato cometido por agentes estatais ou por vigilantes não estatais com a cobertura da sanção do Estado-- é o abuso máximo de poder e violação de direitos. Reportar sobre esses assassinatos representa desafios específicos para jornalistas investigativos.

Os jornalistas têm que descobrir como separar a verdade dos rumores, dar testemunho a pessoas sem poder e identificar as responsabilidades quando forem obscurecidas. A repórter investigativa do Rappler Patricia Evangelista, das Filipinas, e Clare Baldwin, uma premiada correspondente da Reuters, têm experiência em cobrir assuntos difíceis como a guerra do presidente Rodrigo Duterte contra as drogas desde que ele assumiu o cargo em 2016.

A posição dura de Duterte e o apelo público para que os cidadãos exterminem traficantes de drogas resultaram em milhares de mortes de supostos suspeitos de tráfico de drogas, alguns mortos por vigilantes e outros assassinados por policiais (a contagem de mortes varia muito de acordo com a agência). Seu governo também vem implementando ações punitivas nos últimos anos para justificar sua extrema política antidrogas. Para lidar com essa monstruosa violação dos direitos humanos, Evangelista e Baldwin compartilharam suas dicas para investigar profundamente as execuções extrajudiciais.

1. Coletar e mapear os dados

Quando os dados não estiverem prontamente disponíveis, colete-os. Para obter uma estimativa do número de suspeitos de assassinatos relacionados a drogas, Baldwin viajou para diferentes delegacias de polícia nas Filipinas e tirou fotos de registros policiais manuscritos, bem como coletou dados eletrônicos de bancos de dados da polícia. A informação que ela coletou era útil, pois continha os nomes das vítimas, coordenadas de GPS das mortes e descrições narrativas do que aconteceu.

Reunir todas as informações que ela recuperou foi um trabalho intensivo, mas permitiu que ela estabelecesse um registro do que havia acontecido. "Mapear os assassinatos é importante porque você pode então procurar pelas concentrações", disse ela.

2. Dados são mais do que números 

Com o progresso da guerra às drogas, um colega de Baldwin, um fotógrafo da Reuters, percebeu que estava ficando cada vez mais difícil tirar fotos de corpos nas cenas de crimes porque eles estavam sendo levados rapidamente para hospitais. Baldwin e o fotógrafa ficaram igualmente perplexos. “Nós pensamos: essas pessoas estavam mortas; por que os corpos foram para o hospital [em vez do necrotério]? Então seguimos a trilha nos registros da polícia.

Surpreendentemente, eles descobriram que, em vez de serem declarados “mortos no local”, os registros da polícia declararam que essas vítimas estavam “mortas na chegada” no hospital. “Morto na chegada, morto no local. Tratamos esses termos como dados e estabelecemos o léxico do terror, a linguagem que Duterte usou para matar pessoas”, disse Baldwin.

Ao mapear essas frases comuns, ela conseguiu estabelecer que, no começo, uma proporção maior de suspeitos de drogas era registrada como morta no local, enquanto mais tarde havia muito mais mortes na chegada. Isso ajudou a estabelecer as bases para a sua matéria, sugerindo que a polícia estava enviando cadáveres para hospitais para encobrir execuções sumárias.

3. Obter análise especializada de fotos da cena do crime

Investigadores médicos ou cientistas forenses podem dizer muito sobre o que acontece no crime a partir de fotos da cena. Compare sua análise de especialistas aos registros policiais oficiais para ver se estão corretos. Baldwin citou um exemplo de uma operação antidrogas da polícia que resultou na morte de vários homens. Os relatos da polícia afirmaram que as vítimas foram mortas enquanto fugiam de um tiroteio. As fotos da cena do crime, no entanto, sugeriram uma narrativa diferente.

"As vítimas sofreram tiros nas mãos", disse Baldwin. “Essas são feridas tipicamente defensivas. Eles provavelmente não estavam disparando uma arma, mas tentando se defender”. Outras pistas incluíam os padrões de manchas de sangue e o agrupamento de ferimentos por arma de fogo.
 

Análise Forense: Ferimentos por arma de fogo e padrões de manchas de sangue de vários suspeitos de drogas não coincidiram com o relato da polícia sobre o incidente. Imagem: Captura de tela da reportagem da Reuters.

7. Precisão é a chave

Há muitos riscos em cobrir mortes extrajudiciais. Por sua natureza, eles são difíceis de provar, especialmente quando as autoridades são cúmplices. Relatórios policiais podem ser questionáveis. “Portanto, coloque à prova testemunho após testemunho, fique paranóico como o diabo e proteja sua história”, enfatizou Evangelista.

8. Saiba quando desistir

“Você está presente no pior momento da vida de uma pessoa. A maneira como você aborda essa pessoa será importante para ela, e isso também será importante a longo prazo, porque é assim que eles decidirão se vão falar com você no futuro”, disse Evangelista. Ela aconselhou jornalistas a serem pacientes ao esperar pela permissão de um parente para uma entrevista.

"Se eles disserem que estão com medo e que conversar com você pode colocar suas vidas em perigo, não os force", acrescentou Evangelista. “Diga 'sinto muito, minhas condolências' e vá embora”. Se eles concordarem com uma entrevista, evite fazer perguntas como “Como você se sente?”, “Seu filho é culpado?” ou “Você se sente culpado por isso?" Em vez disso, sugeriu Evangelista, comece perguntando o que eles comeram no café da manhã, nome, emprego, idade do filho ou quantos filhos eles têm, porque os fatos são as coisas mais fáceis de responder. 

9. Proteger suas testemunhas

Proteger testemunhas não significa apenas mudar os nomes das testemunhas ou borrar seus rostos na publicação final, enfatizou Evangelista. Ela disse que é importante explicar a eles que, uma vez que a história for publicada, as pessoas poderão eventualmente descobrir quem são. “No momento em que as pessoas sabem quem é a vítima, é possível descobrir quem é a esposa ou quem são os filhos.”

Certifique-se de que eles estão cientes disso e têm uma maneira de ligar para você ou ir para algum lugar no caso de algo acontecer. Conecte-os com pessoas (e organizações) que possam protegê-los.

10. Mantenha-se seguro e mantenha suas comunicações seguras

Tanto Evangelista quanto Baldwin concordaram que os jornalistas não deveriam cobrir assassinatos extrajudiciais sozinhos. "Certifique-se de ter alguém com você, um fotógrafo, um colaborador ou outra pessoa", enfatizou Evangelista. Baldwin acrescentou que é imperativo manter um ponto de contato informando em todos os momentos sobre o seu paradeiro e quem você está encontrando. Variar sua rotina diária também é uma boa medida de segurança. “Fique em hotéis diferentes, saia em horários diferentes do dia. Quanto mais irregular for sua agenda, melhor”, disse Baldwin.

Como prática padrão, os jornalistas também devem criptografar tudo, desde e-mails a textos. "Também é importante não dizer às suas fontes com que outras fontes você está falando, especialmente quando essas fontes podem matar outras fontes", disse Evangelista.

No final da sessão, ambos os jornalistas falaram sobre como eles conseguem manter o foco e não sair dos trilhos enquanto cobrem tais eventos traumáticos. Baldwin disse que conversas regulares com seus colegas ajudavam a mantê-la sã. “Falamos de logística, hotéis. Apenas ter alguém para trocar ideias e conversar é importante.”

Evangelista concordou que ter uma “tribo” para conversar é importante. Ela também segue esta prática pessoal: "Eu só leio livros e assisto filmes com finais felizes."


Esta é uma tradução editada do artigo original que apareceu na Rede Global de Jornalismo Investigativo (GIJN). Foi publicado na IJNet com permissão.

Uma nota da GIJN: Pensando em nossos colegas [nas Filipinas], a GIJN está apresentando este guia para investigar assassinatos extrajudiciais extraídos das experiências de duas jornalistas excelentes nas Filipinas: Patricia Evangelista, do Rappler, e Clare Baldwin, da Reuters. Essas dicas foram apresentadas originalmente na Conferência de Jornalismo Investigativo Asiático em Seul em outubro passado.

Eunice Au é coordenadora do programa da GIJN.

Imagem principal sob licença CC no Unsplash via Agence Olloweb