Há quase 26 milhões de refugiados no mundo fugindo de guerra, violência e perseguição, segundo a Agência das Nações Unidas para os Refugiados. Os refugiados enfrentam algumas das situações mais debilitantes e traumatizantes, como falta de acesso a alimentos, separação da família e incerteza sobre o futuro e seus meios de subsistência. Pesquisas sugerem que refugiados podem sofrer violência doméstica a taxas mais altas devido a uma ruptura nas estruturas sociais e à falta de sistemas de apoio e oportunidades econômicas.
Pesquisadores e parceiros da Universidade de Harvard, incluindo a Universidade de Addis Ababa, Women and Health Alliance em Etiópia e a Fondation Hirondelle, estão usando podcasts em ambientes humanitários para ajudar a prevenir e reduzir a violência por parceiro íntimo (IPV, em inglês). Faz parte do programa Unite for a Better Life, que começou em 2014 como um programa de intervenção pessoal projetado para uma comunidade rural na Etiópia. O programa utiliza abordagens participativas para estimular o diálogo sobre questões cruciais que afetam as comunidades e desenvolver habilidades para apoiar relacionamentos e famílias saudáveis. Foi então adaptado para um contexto humanitário e de refugiados no país, depois que os pesquisadores viram a oportunidade de usar o programa como uma solução possível para uma necessidade urgente.
Mais recentemente, a equipe por trás do Unite for a Better Life adicionou conteúdo digital ao programa como uma série de podcasts. As criadoras do programa — Dra. Vandana Sharma e Dra. Jennifer Scott — colaboraram com refugiados para criar a série com base nos objetivos do design original do programa.
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As pesquisadoras disseram que escolheram uma série de podcast porque poderia alcançar mais pessoas com informações atualizadas e baseadas em evidências sobre um cenário humanitário do que a programação tradicional presencial. Nos campos de refugiados na área de Dollo Ado, na Etiópia, onde a série foi desenvolvida, as redes de internet e telefonia móvel podem ser interrompidas e, portanto, os podcasts --arquivos MP3 que podem ser compartilhados via bluetooth-- apresentam uma solução de baixo custo que não depende de conectividade.
A série de 16 episódios discute diferentes cenários, identifica comportamentos saudáveis e não saudáveis nos relacionamentos e apresenta estratégias para intervir com um espectador, entre outras coisas. Cada podcast inclui música, uma introdução ao tópico do episódio, esquetes com casais interpretando os objetivos de aprendizado da sessão, entrevistas com opiniões do público e painéis de discussão gravados. O episódio termina com uma revisão das principais mensagens e atividades a serem praticadas em casa.
As pesquisadores pilotaram a série nos acampamentos ao longo de 2019 e descobriram que a série foi bem recebida. O piloto alcançou quase 200 famílias, e membros selecionados da comunidade foram convidados a frequentar centros de escuta. Cerca de 90% dos homens e mulheres relataram que mudaram de comportamento como resultado do que aprenderam, inclusive na forma como se comunicam com o parceiro. Muitos participantes compartilharam seus novos conhecimentos com outras pessoas do campo que não haviam participado do programa, o que sugere que o programa poderia levar a mudanças além dos participantes diretos, segundo as pesquisadores.
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A IJNet conversou com as pesquisadoras Sharma e Scott sobre como projetar, gravar e disseminar uma série de podcasts em um ambiente humanitário.
IJNet: Como vocês desenvolveram essa ideia para a parte de podcast do Unite for a Better Life?
Sharma: O que é único nesse projeto em particular usando podcasts é sua abordagem participativa e centrada no ser humano, que realmente capacita as pessoas a criar soluções para melhorar suas próprias vidas e comunidades. Normalmente, os programas que abordam a violência por parceiro íntimo tendem a envolver sessões educacionais participativas em pessoa. Mas em contextos humanitários, onde as populações são móveis, uma intervenção pessoal prolongada pode não ser viável e, portanto, é necessária inovação. Nossa equipe acredita que uma abordagem como a série de podcast poderia ter um alcance maior, pois as pessoas poderiam baixar os episódios de podcast e compartilhá-los de pessoa para pessoa. Em um contexto humanitário, isso significa que poderíamos alcançar muitas pessoas muito rapidamente.
A comunidade de refugiados trabalhou nos podcasts. Por que isso era importante?
Sharma: Tivemos mulheres e homens no campo de refugiados em Dollo Ado, Etiópia, envolvidos no design, produção e disseminação dos podcasts. Os membros da comunidade de refugiados trabalharam ao lado de nossa equipe. Eles foram treinados em narrativa digital e foram orientados durante a criação dos podcasts. Era realmente importante envolver membros da comunidade de refugiados para criar os próprios podcasts para garantir que o conteúdo fosse culturalmente relevante, apropriado ao contexto e incluísse mensagens que eles acreditassem poder transformar normas e comportamentos de gênero em suas próprias comunidades.
Qual foi a parte mais desafiadora do projeto em geral?
Sharma: Muitos aspectos do projeto foram desafiadores. Eu acho que o maior desafio foi projetar e implementar um programa junto com a pesquisa nesse cenário específico. Os campos de refugiados estão em um local muito remoto. É muito difícil de acessar e houve problemas de segurança. Certamente estávamos preocupadas que criar podcasts pode ser difícil, uma vez que os recursos são limitados nesse cenário. Por exemplo, não há estúdios de som para produzir áudio de nível profissional. Mas nossa equipe era muito engenhosa e conseguiu encontrar soluções locais para produzir conteúdo de alta qualidade.
O estúdio foi criado em um espaço de escritório em uma organização comunitária no campo. O campo é uma comunidade remota perto da fronteira Etiópia-Somália. Cada podcaster tinha um kit de gravação, que consistia em um gravador, fones de ouvido e microfone. Tudo isso poderia ser usado sem eletricidade, pois a maioria dos edifícios --incluindo o escritório-- não possuía eletricidade. A insonorização foi uma questão importante, pois era a temporada de vento, e o teto de metal do escritório fazia muito barulho. Havia outros ruídos externos que também interferiam na gravação do som. A equipe foi criativa e comprou alguns colchões no mercado local para revestir as paredes e criar uma área à prova de som para gravar o conteúdo.
Você contratou uma especialista em podcast para ensinar os podcasters da comunidade de refugiados. Por que isso foi importante para o programa?
Scott: O projeto de podcast baseia-se na tradição oral somaliana de contar e ouvir histórias. Uma especialista em podcast baseada na região forneceu experiência em narrativa digital. Trabalhando com uma equipe de homens e mulheres do acampamento, ela ajudou a desenvolver habilidades de gravar conteúdo, editar e produzir podcasts. Ela os orientou a produzir com sucesso a série de podcasts, que muitos dos podcasters descreveram como um processo empoderador e transformador.
A posição de especialista em podcast foi publicada no campo e homens e mulheres interessados da comunidade de refugiados foram entrevistados como possíveis candidatos. Nenhum deles possuía conhecimento prévio em podcasting, rádio ou outro tipo de comunicação. Muitos dos homens e mulheres selecionados já haviam trabalhado em programação relacionada a gênero e, portanto, tinham um bom entendimento da área de conteúdo.
Os homens e mulheres receberam compensação financeira por seu trabalho. Na conclusão do treinamento em podcast, eles receberam certificados que documentavam o tipo de treinamento que haviam concluído. As habilidades de aprendizado em entrevistas, gravação de podcast, distribuição e engajamento com a equipe do projeto foram relatadas como uma experiência significativa e empoderadora para os podcasters.
Kristi Eaton é jornalista freelance em Tulsa, Oklahoma. Ela participa da Tulsa Artist Fellowship, onde examina a reforma da justiça criminal, bem como refugiados e imigração.