Boca Fechada: um documentário sobre o assassinato de radialistas no Brasil

Apr 17, 2022 em Jornalismo investigativo
Cartaz do documentário

Lista com tabela de preços dos que vão morrer, autoridades e comparsas morando ou circulando a poucos metros de suas potenciais vítimas. Este é o cenário de corrupção descrito no documentário “Boca Fechada”, lançado no início deste ano pelos cineastas Aquiles Lopes e Marcelo Lordello. Eles retratam o assassinato de comunicadores em cidades periféricas brasileiras.

O Brasil é o segundo país mais perigoso para os comunicadores em toda a América e o décimo no ranking mundial, de acordo com os dados da Federação Internacional de Jornalistas. Só de ameaças e agressões foram contabilizados 33 casos em 2021. 

O documentário começou a ser produzido em 2019 e teve como cenários cidades dos estados de Pernambuco, Pará e São Paulo. A seguir uma entrevista com os diretores.

1.O que despertou a vontade de produzir um documentário sobre o assassinato de comunicadores em cidades do interior do Brasil?

Lopes: Sou jornalista profissional desde 1997 e sempre me dediquei a debater temas relacionados à comunicação, seus processos e dificuldades. Em 2015 tive contato com alguns relatórios que mostravam os casos de execuções sumárias, arbitrárias e extrajudiciais contra comunicadores no país. Então passamos a ter a intenção de transformar num formato que chegasse a mais pessoas o alerta para essa realidade tão alarmante. 

Lordello: Os índices de assassinatos de comunicadores no Brasil eram assustadores. Números reveladores de uma estrutura e dinâmica de poder tipicamente brasileiras, nas quais oligarquias políticas e econômicas dominam cidades e regiões subjugando e dominando canais de informação. Um retrato complexo de um país que precisava ser revelado e que tinha um grande potencial dramatúrgico para um documentário. 

2. Houve algum momento em que vocês se sentiram ameaçados ou intimidados durante as filmagens?

Lopes: Tivemos um trabalho de pré-produção, checando todas as localidades e possíveis fontes, ajustando as condições para as entrevistas. Tivemos uma grande ajuda da Abraji e da então coordenadora do projeto Tim Lopes, Angelina Nunes. Tanto no diálogo com as fontes, quanto em cuidados para a proteção e estada nas cidades. Viajamos numa equipe de apenas 4 pessoas, para tentar chamar o mínimo de atenção.

Lordello: A sensação de risco era constante. Estávamos tratando de um tema polêmico em que haviam muitos interessados pelo silenciamento. Mas foram pouco os casos de intimidação. Em Bragança, os sobrinhos de um dos mandantes nos perseguiram pela cidade e intimidaram fisicamente nossa equipe uma vez na frente do hotel onde ficamos. Mas nunca um confronto direto.

3. Crimes como os que vocês relataram quando ocorrem em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro se tornam notícia no resto do país. O que vocês acham dessa “desproporcionalidade de repercussão”, quando estas notícias estão longe das grandes capitais?

Lopes: Metade das cidades brasileiras vive um deserto de informações, com apenas um ou nenhum veículo. Não há corpo jurídico ou capacidade de reação para ameaças e intimidações que comunicadores sofrem. Mesmo os sindicatos e associações dificilmente chegam a estas pessoas. As rádios, na maior parte dos casos, estão nas mãos de agentes políticos. São grupos que já controlam cartórios, imóveis, comércio, etc.

Lordello: Os casos que acompanhamos, que são representativos dos índices gerais dos assassinatos, tem como vítimas comunicadores por assim dizer amadores, radialistas que capitaneavam programas em sua maioria polemistas e de tom agressivo na revelação das notícias. Infelizmente, poucos casos chegam a julgamento. Um quadro que revela um sistema de impunidade, no qual o próprio sistema judicial, às vezes, tem vínculos com a estrutura de poder que fomenta os crimes. Penso que a proliferação da quantidade de casos banalizou o interesse da grande mídia em expor nacionalmente esses casos, e o “amadorismo” dos profissionais assassinados diminui ainda mais o interesse da grande mídia tradicional sobre um quadro que necessitava chegar ao grande público.

4. O radialista é uma espécie de herói que fornece o lugar de fala a população?

Lopes: Metade dos comunicadores executados no Brasil, segundo o levantamento do Conselho Nacional do Ministério Público, trabalhava em emissoras de rádio. É um modelo de veículo que tem enorme importância nessas localidades por tocar diretamente na vida das pessoas. 

Lordello: Os personagens do documentário se valem do perfil de detentor da verdade, do revelador das injustiças. Tanto que têm a alcunha de “heróis da verdade”. O que a gente apurou é que em muitos casos esses personagens servem a um lado da disputa de poder local, valendo-se desses atributos conquistados para servir a um lado do jogo, com pretensões deles mesmos entrarem no jogo político local.

5. No trecho sobre a morte do radialista Gleydison Carvalho, de Camocim, no Ceará, há a cena de um muro onde se lê “Quem rouba aqui vai morrer. A lei quem faz é nós” (sic), atribuída ao Comando Vermelho. Além dos prefeitos, o tráfico e a milícia são ameaças aos comunicadores das cidades que vocês retrataram?

Lopes: O tráfico e as milícias, muitas vezes, financiam ou são parte da ação política. Isso acontece nos bairros, nas periferias, das grandes cidades, mas também nas pequenas, onde há células do crime organizado. Onde o Estado “não chega”, o crime se estabelece como representatividade dominante, ocupando esse espaço.

Lordello: A inserção desse plano das inscrições no muro serve ao documentário para mostrar a fragilidade e o ambiente de violência no qual a população de baixa renda local está inserida. Um dos depoentes é morador desse bairro em Camocim. Os radialistas atacavam e denunciavam os criminosos locais.

6. O que vocês pretendem com esse documentário?

Lopes: O objetivo é despertar discussões e chamar a atenção para o problema. Visibilizar toda esta violência contra comunicadores brasileiros, que não chega aos grandes meios de comunicação. Os próprios comunicadores, dos grandes centros urbanos, não debatem o assunto. É como se não existisse.

Lordello: Para mim tudo o que vimos e filmamos é muito representativo do país em si, algo que não se restringe apenas ao interior. Queremos que o público, de alguma forma, faça essa conexão e torne-se mais alerta sobre como o direito de acesso a informação pode ser tolhido por interesses de dominação política e econômica. 


Foto: Extraída do título do documentário


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