Uma jornalista investigativa persistente. Como tem que ser. “Eu acho que eu tenho como qualidade, não abandonar as histórias”, diz Juliana Dal Piva. Ela é colunista do ICL Notícias e do El Clip, autora do livro “O negócio do Jair: a história proibida do clã Bolsonaro” e esta semana lança o mais novo livro: “Crime sem castigo: como os militares mataram Rubens Paiva”. Um trabalho de apuração minuciosa que começou há 15 anos. Juliana conversou com a IJNet Português sobre a construção do livro, o jornalismo atual e as premissas de um jornalista investigativo.
A pesquisa sobre desaparecidos políticos
“Eu originalmente, do meu coração, sou uma repórter dedicada a cobrir direitos humanos. E por muito tempo eu me dediquei a pesquisar sobre casos de desaparecidos políticos e entrevistar envolvidos com a tortura”, diz Dal Piva. O interesse começou em 2008 quando, ainda na faculdade, fez um intercâmbio na Universidade de Buenos Aires e acompanhou a luta na Argentina sobre a política de transição. “Logo depois de formada, eu começo a estudar por conta própria, era época do julgamento da Lei da Anistia, comprei livros, li dossiês, assisti filmes. Em 2010 eu começo a sugerir as primeiras pautas já na expectativa da aprovação da Comissão Nacional da Verdade”.
Em 2012, ela participou de reportagens sobre a “Casa da Morte”, em Petrópolis, para o jornal O Globo. Foi quando teve a oportunidade de entrevistar militares e se deparar com um deles que sabia sobre Rubens Paiva (engenheiro civil, ex-deputado federal, desaparecido em 1971 e morto pela Ditadura Militar brasileira). “A partir daí foi só puxar o novelo”, diz Dal Piva. Em 2016, ela finalizou um mestrado sobre Rubens Paiva.
“Eu tinha uma curiosidade, uma obsessão quase, de por que se levou quase 40 anos para descobrir quem matou Rubens Paiva. [...] a gente não sabia: onde estavam os restos mortais e quem eram os responsáveis”, diz a jornalista.
Um livro que honra outros jornalistas
O livro, que inclui parte do seu mestrado, conta com informações de trabalhos de outros jornalistas. “Eu integro gerações de jornalistas que investigaram o caso, desde os anos 70. E é uma coisa que eu mostro como essas peças vão sendo montadas.”
Entre as citações está o trabalho dos jornalistas Fritz Utzeri e Heraldo Dias, no Jornal do Brasil, em 1978, que denunciou a fraude sobre a versão da fuga de Rubens Paiva. “E outra jornalista muito importante foi a Martha Baptista que fez uma entrevista com o médico Amílcar Lobo e ele diz que viu o Rubens Paiva passar mal no DOI-CODI”, acrescenta Dal Piva. Esta entrevista foi publicada na revista Veja, em 1986.
Houve também jornalistas que se tornaram colaboradores da família. “Eunice [mulher de Rubens] contou com a ajuda dos jornalistas na tentativa de mobilizar politicamente as pessoas e nos anos 80, quando a investigação é aberta, os jornalistas ajudam os advogados da família a instruírem as perguntas”.
A apuração dos fatos
Quando se trata de explicar sobre os horrores da ditadura, Dal Piva toma cuidado com as palavras. “Não gosto da expressão “porão”, dá uma noção equivocada do aparato daquele tempo. Era uma estrutura hierárquica organizada, treinada, preparada, desde a presidência da República até a parte mais baixa, que vinha para prender, torturar, assassinar e desaparecer com as pessoas”, frisa a jornalista. “Parte do grupo que assassinou Rubens Paiva são alguns dos oficiais mais preparados da Ditadura, inclusive com cursos no exterior”.
Algumas fontes de Dal Piva relataram que a intenção inicial não era assassinar Rubens Paiva. “Eles pretendiam prendê-lo, torturá-lo. O que os militares falam é que em algum momento eles perderam o controle. E o Rubens acabou morrendo sob tortura”, explica ela. “Eles tinham médicos que acompanhavam a tortura e diziam quando podia ou não continuar. Era esse o nível de horror e violência que o regime atuava”.
Dal Piva explica ainda que, segundo os relatos, os militares tinham o problema de onde esconder o corpo de alguém que saiu de casa saudável. “Não dava para dizer que tinha sido suicídio, nem infarto. Então eles forjam uma fuga. Literalmente levam um carro para o alto da Boa Vista, chegam a fazer uma perícia e documentos forjados.”
O livro conta também os detalhes dos enterros clandestinos que o corpo de Rubens Paiva foi submetido. “Na estrada da Boa Vista houve o primeiro enterro clandestino e anos mais tarde, quando ia existir uma obra, ele foi retirado de lá e enterrado numa praia entre o Recreio dos Bandeirantes e a Barra da Tijuca. Depois descartado num rio na região metropolitana do Rio de Janeiro.”
O contato com a família de Rubens Paiva
A jornalista não chegou a conhecer Eunice Paiva, mulher de Rubens. “Ela já estava bem doente quando eu comecei o meu trabalho. A Vera Paiva [filha] era a pessoa da família que mais acompanhava as audiências no judiciário e foi a pessoa que eu mais entrevistei e depois o Marcelo”.
Sobre Marcelo Rubens Paiva (escritor e jornalista, filho de Rubens Paiva), ela lembra como ele ficou impressionado com uma reportagem que ela participou em 2019. “[...] A gente descobre que dentro do gabinete do Bolsonaro, ao investigar os funcionários dele, ele empregou ao longo de um ano a ex-mulher do general responsável pelo assassinado do Rubens Paiva. Um dos cinco acusados pelo crime, que ainda está vivo”.
Uma mulher entrevistando generais
Dal Piva entra na infeliz estatística de mulheres jornalistas que sofreram assédio moral no exercício da profissão. “Eu já fui assediada no sentido do machismo mesmo. Das pessoas me chamarem de ‘aquela menina’, por exemplo”, conta ela. “E o machismo já começa dentro da redação quando acham que um homem tem mais capacidade que você para cobrir uma pauta que envolve temas como este”.
Ela trocava até a roupa para não chamar atenção. “Ao entrar em contato com entrevistados, como estes militares, eu estava sempre preocupada de como me comportar e de como eu deveria ir vestida. Eu usava sempre uma calça jeans, camisa de manga comprida e botões fechados até o pescoço. Imagina, num Rio de Janeiro de 40 graus?”.
Dal Piva é otimista em considerar que houve mudanças. “Hoje em dia eu acho que as novas gerações de jornalistas mulheres estão vindo mais preparadas. Vejo elas questionando mais o que não acham certo e fazendo mais reclamações com situações que não as agrada. Não toleram mais assédios que antes a gente naturalizava e deixava passar”.
Reflexão sobre o “doisladismos”
Para a jornalista, a ascensão da extrema-direita, com a entrada do bolsonarismo na política brasileira, deu uma esfriada nas pautas sobre direitos humanos. “Não é que não existiram cobertura de direitos humanos nesse período, tiveram e eu mesma fiz. Mas existiu uma dificuldade muito grande de sensibilizar editores”, analisa ela. “Houve uma sensação generalizada na imprensa brasileira de não dar mais espaço que o assunto como merecia, de não cobrar dos governos subsequentes que se instalasse um órgão permanente para dar sequência à Comissão Nacional da Verdade. Aí entrou a era da fake news onde tinha maluco no meio da rua cobrando volta do governo militar”.
Dal Piva acrescenta que, nesta mesma época, alguns debates dentro das redações sobre o equilíbrio, o espaço a ser dado para pontos de vista opostos, o chamado "doisladismos" são “questões que não têm nem discussão”. E acrescenta: “Não existe dois lados quando a gente fala de direitos humanos. Essa é uma cobertura que todo mundo precisa abraçar e ter como um norte e não negligenciar”.
A importância do jornalismo investigativo
“O jornalismo investigativo constrói conhecimento quando ele dá certo, quando a gente consegue efetivamente avançar numa investigação própria. Não é só reportar o que está nas investigações oficiais”, define a jornalista. Ela considera que jornalistas não podem permitir que se torne "normal" aquilo que vemos de errado todos os dias. “Não podemos nos acostumar, nem esquecer".
E o que ela recomenda a um estudante de jornalismo? “Aprimore o seu olhar. O modo como se vê e se entende o mundo é o que vai garantir que você não desista de histórias necessárias que muitas vezes são difíceis demais de contar e que não acabam em uma reportagem e não podem também ser abandonadas”.
O lançamento do novo livro coincide com a expectativa de mais prêmios para o filme com o mesmo tema. "Ver o filme ‘Ainda estou aqui’ ganhar o mundo, ser indicado ao Oscar de melhor filme do ano, fora tudo que a Fernanda Torres está conquistando é lindo demais e uma homenagem a todas às vítimas e seus familiares. Também sinto como uma vitória minha. Ver essa história ganhar o mundo é uma vitória enorme”, se emociona Dal Piva.
Foto-montagem com foto de Custódio Coimbra
*Lançamento do livro, dia 12 de fevereiro de 2025, na Livraria da Travessa, em Botafogo, na cidade do Rio de Janeiro, das 6:30pm às 9:30pm.