A história do jornalista brasileiro preso e torturado durante a guerra na Síria

Mar 30, 2025 em Diversos
Livro e autor

Ele é o único jornalista no mundo que foi preso na Síria, mesmo com visto oficial de imprensa. Klester Cavalcanti viveu um martírio que durou 6 dias com momentos de tortura e de achar que ia ser executado. A experiência virou livro que ganhou o Prêmio Jabuti em 2013. “Dias de inferno na Síria” está sendo relançado agora. Por conta da queda do governo de Bashar al-Assadr - o mesmo responsável pela sua prisão, Cavalcanti achou pertinente incluir na reedição do livro suas impressões sobre o ditador.

O sonho de cobrir uma guerra

Cavalcanti completou recentemente 30 anos de carreira. Tem outros dois livros publicados também ganhadores do Jabuti – o maior prêmio de literatura no Brasil (em 2005 com o livro “Viúvas da Terra” e em 2007 com “O Nome da Morte”). Cobrir uma guerra sempre foi o que ele queria fazer. “Desde a época de faculdade eu tinha o sonho de cobrir uma guerra e na minha cabeça tinha que ser no Oriente Médio, porque sempre tive fascínio pela cultura. Mas um garoto de Recife, numa faculdade em Recife, isso era um sonho inalcançável”.

Cavalcanti foi por dois anos correspondente da revista Veja na Amazônia antes de ir parar em São Paulo, onde passou por inúmeros veículos de imprensa indo “de repórter a diretor de redação”, como ele diz. O projeto “cobrir uma guerra” partiu dele quando estava na revista Isto É. “Quando começou a guerra em 2011 eu comecei a ler muito sobre o conflito. Na Isto É eu não tinha atribuição de repórter para cobrir a Síria, mas depois que eu consegui o visto, eu fui até a direção perguntar se eles tinham interesse”, conta ele. “Eles só tinham dinheiro para alguns custos, não tinham para a passagem. Eu paguei minha própria passagem”.

A prisão

“O governo sírio me deu só uma semana de visto. E obviamente eu planejei a viagem toda em função disso”, explica o jornalista. Ele já tinha em mente que não queria ficar em Damasco, onde o governo sírio fazia questão de manter os jornalistas visitantes porque justamente não havia sinal de guerra. E assim ele conseguiu ir de ônibus de Damasco para a cidade de Homs, algo que pouca gente acreditava ser possível. “Quando eu cheguei na rodoviária, eu já vi bombas caindo, tudo destruído. Fui fazendo fotos e vídeos”, conta ele. “Mas nada prepara alguém de estar andando numa rua e cai uma bomba perto de você, ouvir tiros e ver gente morrendo perto de você”.

Enquanto andava por Homs, diante de uma barreira militar, mesmo mostrando o passaporte e o visto, ele foi preso. “Ficaram vários soldados apontando armas pra mim e falando em árabe”. Depois, ele foi levado de carro com arma na cabeça para uma delegacia improvisada. “Eles já sabiam que sou jornalista, não se preocuparam em vendar meus olhos, eu estava vendo tudo, eu ia ser executado”. No livro ele conta os detalhes sobre a quantidade de vezes que teve certeza de que iria morrer.  

Em uma delegacia improvisada, ele foi “fichado”. E depois levado para um presídio onde ficou numa cela com uns 20 homens, que ele entendeu não serem criminosos perigosos. Ele era o único jornalista preso e o único que não era mulçulmano. "Eu dormia no chão e passei muita humilhação".

Uma cobertura de guerra deve ser humana

A intenção do jornalista sempre foi reportar sobre como uma guerra afeta a vida das pessoas. “Questões políticas, estatísticas, são fáceis de cobrir. A parte difícil, e que eu acho que é para isso que existe jornalismo, é o lado humano, o que as pessoas sofrem, o que elas estão sentindo”, diz ele. “Quem se dispõe a cobrir um conflito tem que estar muito atento as questões humanas. E se preparar bem, principalmente mentalmente, se tiver algum apoio espiritual, melhor”.

Cavalcanti faz críticas à cobertura da mídia brasileira à guerra da Síria. “As matérias que chegavam aqui eram enlatadas, de agências, basicamente numéricas”, diz ele.  “Era muito constrangedor pra mim, ver, principalmente na tv, um jornalista que não estava na Síria, aparecer em Londres ou em NY como correspondente falando sobre a guerra lá”.

Ele conseguiu cumprir o objetivo que queria. “Ao ser preso, eles me deram coisas que eu não teria, uma riqueza de histórias dos presos e tempo para ouvi-los. Porque se eu tivesse na rua eu não teria isso”, diz o jornalista.  Ele fez um amigo lá dentro, o único que falava inglês, que havia sido preso porque estava trazendo cigarros do Líbano para vender e sobreviver, já que com a guerra seu comércio de roupas havia falido. O amigo se tornou seu tradutor para saber as histórias dos outros presos. “Isso até me ajudou para eu conseguir ficar lá sem enlouquecer. Apreenderam tudo meu, mas eu consegui ficar com minha caneta e meu caderninho”.

Os contatos certos

Ele diz que para a viagem tudo foi muito produzido e articulado. Com a guerra, o aeroporto de Damasco, capital do país, estava fechado. O próprio governo sírio o orientou a entrar por Beirute. “Eu tinha contatos em Beirute, dois irmãos que me ajudaram muito e me pegaram no aeroporto. Na Síria, eu já tinha contato no governo da Síria, na embaixada brasileira e até junto ao exército rebelde, de oposição ao governo”, explica Cavalcanti.

E foi exatamente todos estes contatos que o salvaram. “Eu fui solto porque eu tinha feito os contatos certos, tinha passado os avisos no caso de sumir”, conclui o jornalista. O pessoal da embaixada do Brasil foi essencial para a sua libertação.  “Tem uma frase que eu falo muito em palestra: no jornalismo o importante não é saber, é ter o telefone de quem sabe”.

Cavalvanti está sempre disponível para dar palestras em faculdades à estudantes de jornalismo. Ele se diz um obstinado pela profissão e enaltece o propósito em seus trabalhos. “É preciso fazer o trabalho com honestidade, por você e pelo outro. Tem uma filosofia que diz que se você fizer algo de coração, vai dar certo. Só que eu acho que mesmo fazendo com coração pode não dar certo”, avalia ele. “Mas se mesmo assim você tiver um propósito, aí sim dá certo. No meu caso, eu pensei: se eu morrer, vou morrer fazendo o que eu queria fazer e onde eu queria estar”.


Foto: Montagem com fotos de arquivo pessoal de Klester Cavalcanti