Ferramenta digital quer elevar o nível do debate público numa Argentina polarizada

por Maite Fernandez
Oct 30, 2018 em Diversos

Verificar fatos nem sempre é fácil, mas quando a política está tão polarizada que as pessoas não conseguem concordar sobre fatos básicos, como o nível de inflação, pode ser um martírio.

Esse é o clima na Argentina, que está no meio de uma disputa amarga entre o governo de Cristina Fernández e parte da mídia, incluindo o poderoso Grupo Clarín.

A informação polarização e tendenciosa permeia muitos setores do país, tornando difícil estabelecer uma base comum para a discussão pública.

Para melhorar o debate público, foi criada a plataforma Chequeado.com, um serviço de verificação de fatos. Nesse clima polarizado, a plataforma adotou estratégias criativas para promover e financiar seu trabalho, de um vídeo engraçado que transforma alegações falsas em uma canção a uma campanha de crowdfunding através do Idea.me, que segue o modelo Kickstarter para a América Latina.

Num vídeo em espanhol, chamado "Paren el Guitarreo" (que é uma gíria traduzida aproximadamente como "Pare com as mentiras"), um jovem canta uma canção com citações falsas --e, às vezes simplesmente absurdas-- de políticos famosos​.

A diretora executiva da plataforma, Laura Zommer, conversou com a IJNet sobre a estratégia do site. Ela discutiu o papel que as redes sociais desempenham na verificação de dados, como uma organização pode permanecer independente e como tornar projetos de dados atraentes para o público em geral.

IJNet : Quando o Chequeado.com foi lançado?

Laura Zommer: A primeira publicação do Chequeado foi em outubro de 2010... e foi fundado por três argentinos, que não vêm do mundo da mídia, nem do mundo de organizações sem fins lucrativos, nem do mundo da política. [ Os fundadores são: July Aranovich , PhD em física pela Universidade de Stanford, Roberto Lugo , PhD em química pela Cambridge e José Alberto Bekinschtein, economista.]

Apesar de que isso possa parecer estranho à primeira vista, é bastante lógico. Eles são provenientes das ciências exatas, têm a necessidade de ter evidência na discussão. Acreditam que a qualidade do debate público na Argentina é baixo... Eles dizem: se não temos provas e não estamos discutindo fatos [sobre] os quais estamos de acordo... como podemos ter certeza de que, no contexto de polarização e polarização extrema, temos fatos que nos permitem engajar em um discussão significativa?... Pelo menos vamos concordar sobre os fatos.

Chequeado é o primeiro projeto do gênero na Argentina e região... mas não é algo original no mundo. Nos EUA, você tem o Factcheck.org da Universidade da Pensilvânia e o PolitiFact. E há projetos semelhantes na Alemanha.

[Embora o Chequeado tenha sido inspirado pelo factcheck.org], há duas importantes diferenças : a primeira é que o Factcheck.org somente verifica fatos relacionados a políticos eleitos. E nós achamos que, no contexto de polarização da Argentina, verificar [apenas] fatos de eleitos poderia significar que estivessem tomando uma posição que pudesse levar as pessoas a questionar a legitimidade inicial do Chequeado... A decisão que tomamos foi a de não apenas verificar os fatos de eleitos... mas também outras vozes importantes no debate: os agentes sociais, empresários, formadores de opinião e a mídia.

A segunda diferença é que eles usam uma linguagem mais acadêmica , enquanto a nossa é mais parecida com o jornalismo. Com base na ideia de que as plataformas de mídias sociais vão ser um motor e um catalisador para o que estávamos fazendo, decidimos que as declarações terão uma pontuação. O nome da pessoa, a declaração que estamos verificando e uma pontuação... Começamos com "verdadeiro" ou "falso" e agora desenvolvemos uma lista de nove categorias... e todas são descritas na página.

O método que aplicamos, que são sete passos para verificar um fato, é aberto ao público. Nosso "contrato de leitura" com a nossa comunidade é um pouco diferente da mídia tradicional. Não é "confie em mim porque eu sou do jornal La Nación, Página 12... e aqui está a informação que você precisa", mas sim o Chequeado abre os dados produzidos por outros e convida você a avaliar se esse dado é relevante ou não para as reivindicações que estão sendo feitas. Desde o início há uma suposição de um leitor mais ativo.

IJNet : Como o Chequeado foi recebido pelo público ? No contexto da polarização da Argentina, imagino que, em alguns casos, pode ser essencial saber se uma afirmação é verdadeira.

LZ: Acho que algo que nos permite dizer que estamos fazendo o nosso trabalho relativamente bem é que estamos acima da polarização. Hoje o Chequeado é percebido como uma fonte legítima e é reenviado tanto por funcionários do governo (kirchnerista), como por membros da oposição. Obviamente, um funcionário do governo não vai retuitar algo que mostre que a presidente disse algo falso. Ele vai retuitar um fato verificado que coloca um membro do partido de oposição numa posição ruim. Mas um membro do partido de oposição vai fazer o mesmo.

Nosso lema é: não somos simpatizantes de Kirchner nem da Propuesta Republicana, um partido político de extrema-direita e um dos principais partidos de oposição na Argentina]. ... Decidimos que não iríamos receber financiamento do governo e, seguindo a lógica da polarização política de hoje, não iríamos receber financiamento do Grupo Clarín.

IJNet : Como você são fundados?

LZ: Nós seguimos uma estratégia de diversificação de fundos. Temos quatro fontes de financiamento. O mais importante é o apoio de pessoas físicas e também receber doações de empresas . [Desde o início do ano, o Chequeado recebeu o apoio de 101 pessoas e 37 empresas, que incluem tanto as doações de uma só vez e apoio mensal. ] Não há nenhum anúncio na página, mas você pode ver na nossa página as empresas que nos apoiam.

Temos projetos de cooperação internacional que por enquanto são apenas alguns exemplos, incluindo um com a Unicef. A quarta fonte é a receita de outras atividades: renda que não vem na forma de doações. Nossos fatos verificados são anunciados regularmente em outros meios de comunicação (inclusive no La Nación e várias rádios nacionais) e recebemos uma renda a partir desse acordo.

E também recebemos rendimentos de cursos de jornalismo de dados que organizamos para estudantes de jornalismo e jornalistas profissionais que querem saber mais sobre o nosso método de verificação de fatos e, eventualmente, utilizá-lo eles mesmos.

Isso é hoje. A esperança é que até 2015 seremos financiados apenas por pequenos doadores.

IJNet : Como é que surgiu a ideia para o vídeo "Paren el guitarreo"?

LZ: Um dos nossos principais desafios é que dados são chatos. Exceto para nós nerds que gostamos de dados, dados não atingem as massas... O Chequeado tem algo que pode ser visto como chato pelo público em geral, pois constantemente confronta pessoas com o fato de que caíram em algo falso... Porque começamos a partir da premissa de que trabalhamos com coisas racionais e desconfortáveis, queríamos usar o vídeo para nos afastarmos isso: envolver as pessoas, apelando para seus sentimentos de empatia. E achamos que o humor foi um bom recurso .

Maite Fernández é editora-chefe da IJNet. Ela é bilíngue em inglês e espanhol e tem mestrado em jornalismo multimídia pela Universidade de Maryland.

Imagem do vídeo promocional do Chequeado no Idea.me