Fui uma criança atípica. Recordo-me das férias em Minas Gerais, onde elegia sempre as mesmas atividades. Enquanto os primos corriam pelo quintal, eu preferia me ocupar com a máquina de datilografia repousada sobre a escrivaninha no pequeno escritório da casa da tia. Já na casa da avó, o passatempo predileto era rever fotografias antigas conservadas em uma grande caixa de papelão guardada como tesouro no fundo do guarda-roupas. Na altura dos meus onze ou doze anos, lembro-me de estar envolta por mapas escolares tentando compreender a localização do Triângulo das Bermudas. Mal podia prever que estes simples gostos - o apreço pelas palavras, pela fotografia e pelos mistérios do mundo - anunciavam as realizações da mulher que eu me construía ao fio dos anos.
Também cresci aspirando saber um pouco sobre muitas coisas e buscar respostas para muitas perguntas. Mudamos para Brasília e esta vontade orientou a escolha dos meus estudos ao longo de toda minha vida. Aos 17 anos, desejava estudar arqueologia, mas entretanto, meu pai não concebia sua filha morando e estudando em uma metrópole como o Rio de Janeiro. Foi assim que, na falta da arqueologia, acabei optando pela antropologia. Não tardei a perceber que estava enganada na minha escolha, pois ali faltavam as histórias e os mistérios que os monumentos, os objetos e os mortos evocavam por meio da arqueologia.
Resolvi mudar o curso da minha história e migrei para a comunicação, onde descobri no jornalismo uma forma dinâmica de investigar e conhecer o mundo e as suas gentes. Em pouco tempo, na faculdade de comunicação, assumi a monitoria do laboratório de fotografia e conquistei um estágio como fotojornalista na reitoria da universidade. Apesar de estar descortinando o maravilhoso mundo da fotografia, a vontade de tornar-me arqueóloga repousou em sono dentro de mim, mesmo que alguns amigos ainda me tratassem pelo divertido epíteto de Kenianna Jones.
Jornalista formada, percebi que estar atrelada dentro de uma sala de redação não era para mim. Como alternativa, enveredei para um lado independente e empreendi agências próprias de comunicação. Tomei gosto pelo design editorial e editei as mais diversas publicações para instituições em Brasília, Rio de Janeiro, Nova Iorque, Noruega e Paris.
Completada a emblemática idade de 33 anos, decidi que estava na hora de cruzar o Atlântico e enfrentar o desconhecido com a minha câmera fotográfica a tiracolo. A ideia era desembarcar na mitológica Ilha de Creta, um interesse que me acompanhara desde os sete anos de idade motivado pelo episódio do Minotauro, na série Sítio do Picapau Amarelo. Parti para o velho continente numa odisseia de 55 dias em que conheci diversos sítios arqueológicos que até então somente faziam parte do meu imaginário inspirado pelos livros.
Na passagem por Londres recebi recomendação de visitar Newgrange, uma espécie de tumba de passagem construída em tempos muito remotos nos campos da Irlanda. Não hesitei e imediatamente comecei a planejar o itinerário da viagem que iria marcar definitivamente um antes e um depois na minha vida. Assim, a partir dessa viagem em 2004, tive a certeza que eu deveria consagrar meu trabalho e meus esforços em fotografar lugares sagrados pelo mundo. Era uma missão a cumprir.
De regresso ao Brasil, eu já não era a mesma pessoa que partira. Ainda que o meu trabalho como fotojornalista estivesse promissor. Fui a fotógrafa oficial de dois espetáculos de encerramento de carreira de Sandy e Júnior. Na sequência, vieram mais convites para cobrir espetáculos em Brasília, como o de Alanis Morissette, de Julio Iglesias, do Circo Internacional da China, entre outros. E realizei reportagens fotográficas para programas das Nações Unidas em distintos estados do Brasil.
Paralelamente, ministrava aulas de fotografia numa faculdade de comunicação mas sentia enorme vontade de voltar aos estudos acadêmicos. Surpreendentemente, em uma destas sincronicidades que a vida nos proporciona, deparei-me com a primeira pós-graduação em história do cristianismo antigo que a Universidade de Brasília acabara de lançar. Esta era exatamente a preparação que eu necessitava para fotografar territórios e paisagens associadas às narrativas sobre a vida de Jesus na Palestina, Israel e Egito.
Pouco tempo depois, em viagem à Paris, surgiu uma possibilidade de estudar arqueologia. Resolvi abrir a minha caixinha de sonhos e me tornar a arqueóloga que aquela criança envolta por mapas escolares uma vez idealizara. Eu tinha 44 anos. Me formei em história da arte e arqueologia pela Paris-Sorbonne Université e de lá embarquei para Portugal para prosseguir os estudos. O plano era, após conclusão do mestrado, adquirir um motorhome com objetivo de continuar a minha missão fotográfica "Arqueologia do Sagrado". Desde então, eu e minha cadela Gaia Odin iniciamos uma série de viagens a partir de Portugal com o propósito de fotografar locais que eu havia marcado no mapa ao longo dos anos.
Cinco meses depois de iniciada a experiência de viver em uma casa sobre rodas, recebi um convite da Jovem Pan para um podcast acerca da nossa jornada fotográfica e pessoal. Percebi que realizar todas aquelas viagens e afrontar certas adversidades do caminho era viver conscientemente a minha própria odisseia. E senti vontade de compartilhar mais minhas experiências. Foi assim que o jornalismo veio aportar as ferramentas necessárias para desenvolver uma receita muito própria e particular de comunicação. Comecei a filmar o ato de encontro com aqueles sítios tão emblemáticos integrados à paisagem e, aos poucos, eu mesma passei a inserir-me nos vídeos narrando minhas impressões e sentimentos sobre os locais visitados.
Inspirada pela icônica frase do cinema novo brasileiro, “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, organizei meu equipamento e preparei um estúdio de edição sobre a mesa de jantar do motorhome. Assim, nasceu a ideia de ter um canal no youtube, intitulado "Odisseias de Kenia & Gaia". Tudo feito com modestos recursos próprios e coroado pela alegria. E aqui estou eu, uma mulher madura no alto de seus 51 anos de idade, jornalista, fotógrafa, arqueóloga, retornando com entusiasmo à sua origem profissional no jornalismo graças às aspirações daquela criança que cresceu vislumbrando saber um pouco sobre muitas coisas.
Fotos: arquivo pessoal Kenia Ribeiro