No início de fevereiro, os principais jornais de todo o mundo começaram a publicar matérias de uma investigação transfronteiriça em grande escala sobre o gigante banco global HSBC. Uma série de registros bancários internos vazados mostraram que o banco tinha ajudado seus clientes a colocar mais de US$100 bilhões em contas suíças para sonegar impostos, mantendo contas secretas para traficantes, políticos, celebridades e muito mais.
A investigação "Swiss Leaks" é o resultado de oito meses de investigação, pesquisa de dados e reportagem coordenada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, em inglês), uma rede de jornalistas de investigação em todo o mundo, com base em Washington. Os arquivos foram originalmente pegos pelo ex-empregado do HSBC e delator Hervé Falciani, e, em seguida, entregues às autoridades francesas, em 2008. Depois da autoridade fiscal francesa ter iniciado uma investigação, o jornal francês Le Monde obteve o material dos arquivos e entrou em contato com o ICIJ.
Para examinar os 60.000 arquivos, o ICIJ alistou mais de 140 jornalistas de 45 países. O produto final expõe detalhes privados sobre milhares de contas do HSBC, oferecendo "um raro vislumbre dentro do supersegredo bancário suíço e um sistema público nunca visto antes", segundo o ICIJ. Criou efeitos em cascata, incluindo um pedido de desculpas de um alto executivo reconhecendo o crime.
Então como é que o ICIJ conseguiu realizar um projeto tão grande? Para ter uma ideia do processo, a IJNet conversou recentemente com a vice-diretora do ICIJ, Marina Walker Guevara, em Washington, e Mar Cabra, jornalista de dados do ICIJ e repórter na Espanha. A seleção das suas respostas está abaixo.
IJNet: Como vocês formaram a equipe e começaram a fazer um projeto tão ambicioso?
Marina Walker Guevara: Depois que recebemos os dados no início do último verão, nós do ICIJ dedicamos um pouco de tempo para nós mesmos. Examinamos os dados e fizemos listas regionais e nacionais de nomes e clientes, sempre pensando em tornar o [futuro] trabalho mais fácil para os repórteres locais. Em seguida, convocamos uma reunião presencial de um dia no Le Monde em Paris em setembro com todos os repórteres que faziam parte do projeto. Quem não pôde comparecer participou por Skype.
Mar Cabra: Estamos lidando com grandes vazamentos há dois ou três anos já. No primeiro grande projeto, "Offshore Leaks", aprendemos que no minuto em que repórteres entram para o projeto, eles começam a fazer uma tonelada de perguntas. São animais ansiosos. Então tivemos que trabalhar com os dados antes do tempo, por alguns meses, antes de dizer para ninguém. Nosso programador Rigoberto Carvajal escreveu um programa para extrair informações dos arquivos simples para serem convertidas em um banco de deados. Então usamos um programa para identificar todas as informações relacionadas com cada país nos dados. Graças a isso, nós podemos produzir listas para os repórteres de pessoas ligadas ao seu país. Isso deu ao repórteres algo com que trabalhar.
MWG: Todo o processo é cuidadosamente orquestrado e coordenado - damos aos repórteres acesso exclusivo, e, depois, pedimos algumas coisas em troca. Enquanto mantemos nossos compromissos, eles mantêm o deles e temos regras claras e ferramentas eficientes de comunicação; [isso] funciona. A reunião em pessoa acrescenta muito. Há algo sobre a confiança que você sente quando pode ver uma pessoa cara-a-cara, quando sai para uma bebida. Eu não acho que o digital pode substituir tudo isso.
IJNet: Com uma equipe espalhada pelo mundo, que ferramentas facilitaram na conversa online?
MWG: Nós não podemos colaborar de forma eficaz por e-mail, telefone e Skype somente. Isso não é eficiente. Então, nós usamos um software de rede social de código aberto chamado Oxwall, que nós personalizamos e chamamos de Voyager. É realmente nosso ponto de encontro, como a página do Facebook interna do nosso jornalismo investigativo. Este é o lugar onde tudo vai acontecer -- onde divulgamos informações importantes, compartilhamos os furos que temos ou mudanças de direção. A ferramenta oferece coisas como conversas arquivos e imagens em "threads" ou cascatas, e cada membro tem sua própria página com uma imagem e informação. Toda a plataforma é pesquisável. Repórteres verificam a rede todos os dias e isso se tornou um espaço comum, onde nós compartilhamos abertamente com toda a equipe.
MC: Para os dados, utilizamos duas plataformas de código aberto. Para pesquisas de documento usamos a plataforma de busca Solr de código aberto, o que nos permitiu categorizar e fazer o upload dos vazamentos em uma plataforma segura, e então permitiu que os repórteres pesquisassem os vazamentos usando palavras-chave, país, ano e outras variáveis. Além do Solr, também usamos Blacklight, que é uma interface de usuário que tornou a ferramenta mais fácil de usar.
Depois, mais tarde, no processo, como nós continuamos trabalhando com os dados, percebemos que as conexões emergentes entre as pessoas nos dados eram realmente a parte mais importante. Então, nós construímos uma plataforma com a ferramenta de código aberto Linkurious que permitiu a exposição de pessoas e conexões.
Fizemos um manual sobre como usar as plataformas. Treinamentos online também foram essenciais para mostrar aos jornalistas como entender os arquivos e compartilhar truques.
IJNet: E sobre o elemento de segurança ao trabalhar com esses temas sensíveis?
MC: Eu vi que os jornalistas estavam relutantes em usar ferramentas como e-mail criptografado. Eles não entendem isso e acham que é difícil instalar. Então, como um ponto médio quando tivemos de nos comunicar através de e-mail, usamos um serviço chamado Hushmail para comunicações.
Graças ao financiamento da Fundação Knight, estamos atualmente trabalhando no projeto Global I-Hub, que se baseia em Oxwall para torná-lo melhor em termos de usabilidade e segurança. [Aqui está uma apresentação sobre ferramentas de segurança que Mar deu recentemente.]
IJNet: Quão importante foi para o ICIJ ser o "comando central" do processo?
MWG: Muito importante. Foi útil ter uma ligação diária com o campo através do Voyager. Estamos sempre checando [a rede], além de que estamos fazendo a reportagem, pesquisa e edição nós mesmos. E, assim, começamos a perceber quais são as necessidades dos repórteres. Nós nos vemos de uma certa forma como um prestador de serviços. Se colaborações não são bem geridas, o projeto pode virar um pesadelo. Se não há uma cadeia de comando clara, e não há regras claras e compreensão, você pode ter pessoas fazendo o que quiserem.
IJNet: Quais são alguns dos desafios que você enfrentou?
MWG: Os desafios jurídicos deste projeto foram reais. Estamos tocando em questões difíceis. Quando você está falando de um banco, não pode permitir erros. Estamos sendo precisos? Será que estamos sendo conservadores? Isso é o que não nos deixou dormir de noite.
MC: Os fusos horários são o que mata. Na unidade de dados, estamos em Washington, DC, Costa Rica, Venezuela e eu estou na Espanha. Então eu começo a trabalhar em torno das 16 horas [na Espanha] e trabalho até meia-noite ou 1 hora da manhã, assim eu estou online ao mesmo tempo que a minha equipe. É uma maneira diferente de trabalhar e não funciona para todos. Quando você está na mesma sala de redação, pode aparecer e fazer uma pergunta rápida. Mas, para nós, isso não é assim. Então nós temos que criar laços pessoais e profissionais online. Eu sou fã do Skype. Uma vez que você se acostuma com isso, não é tão problemático trabalhar remotamente.
IJNet: Como você acha que será o futuro para projetos colaborativos como este?
MC: O que temos conseguido é bastante notável. As redações estão numa crise econômica. Nenhuma redação agora -- exceto talvez o New York Times e alguns outros -- têm a capacidade de fazer algo grande como este em uma escala global. Mas nós estamos mostrando que é possível. Nós compartilhamos dados, produzimos ferramentas de comunicação, compartilhamos nossas matérias e nossas [ferramentas] interativas, para que isso aconteça.
MWG: Compartilhar não é um instinto de jornalistas -- simplesmente não é a maneira que nós tradicionalmente trabalhamos. Mas nós incentivamos isso. Estamos tentando mudar a forma como funciona o jornalismo investigativo, porque achamos que isso é como ele pode e deve ser no futuro. [Profissionais de] negócios, a polícia, criminosos -- já estão todos trabalhando de forma colaborativa. Como jornalistas, nós somos os únicos que estamos atrás.
Imagem cortesia de Gyver Chang no Flickr sob licença Creative Commons