Blog Mural traz periferia para o centro da conversa

por Izabela Moi
Oct 30, 2018 em Diversos

Jornalismo comunitário, jornalismo cidadão, jornalismo hiperlocal, jornalismo non-profit. Não aceito nenhum desses rótulos. Na minha avaliação, o que os correspondentes do blog Mural fazem há pouco mais de três anos é jornalismo de boa qualidade. Bom jornalismo. Ponto.

Tudo começou em 2010, quando Bruno Garcez, bolsista do ICFJ-Knight Fellowship Program, desenvolvia como projeto, em São Paulo, uma formação para 60 jornalistas-cidadãos, moradores da periferia. Dessa turma, 20 encararam uma aventura: a parceria com a Folha de S. Paulo, que hospedou um blog de notícias da periferia e de municípios da Grande São Paulo.

Na nova casa, o Mural foi ao ar em 24 de novembro de 2010. O desafio seria diário: realizar pautas nas horas que sobravam entre estudo, trabalho remunerado e uma média de três horas de deslocamento em péssimo e lotado transporte público. Cada correspondente é responsável pela cobertura do local onde reside. Da pauta ao texto, à foto, ao vídeo, tudo.

Desde 2010, outras três turmas foram formadas. Como o Mural é colaborativo, muitos jornalistas vão se dispersando ao longo do caminho. Sempre no mês de novembro usamos a reunião de comemoração de aniversário do projeto para dar boas-vindas aos novos participantes.

Hoje, o grupo tem 50 “muralistas” – com a permissão do jogo intencional de palavras –, moradores de mais de 40 bairros e cidades da Grande São Paulo.

Um dos eixos que norteiam o trabalho é que não acreditamos em um jornalismo de gueto. Não há a bandeira de escrever “como periferia”. Não há o discurso “de nós para nós”. Nós somos todos nós. A periferia só é periferia porque foi abandonada pelo Estado. Senão, Campo Limpo seria uma Vila Mariana. Jardim Damasceno, Santana. Perus, Vila Madalena.

Ou seja, o Mural é um blog que cobre uma determinada região geográfica, como é o de um correspondente de Nova York. Ou Londres. Ou Ferraz de Vasconcellos. Ou Paraisópolis. Que diferença faz?

Há, sim, um engajamento inevitável, porque é preciso desconstruir o preconceito vigente na cobertura dessas áreas. Por isso, duas linhas de pautas estão fora da mira desses jornalistas. A primeira é a violência, pois a imprensa “normal” já cobre o tema e o blog não pode dar proteção a seus colaboradores. E não cobrimos projetos de ONGs, fundações e demais ações de responsabilidade social que chegam e saem das comunidades quando bem entendem.

Ou seja, a cobertura do Mural procura negar o estereótipo solidificado ao longo de anos: ou a periferia é algoz da cidade, perpetradora dos atos violentos e, em si, o lugar da violência, ou seus habitantes são “coitadinhos” (“carentes”), vitimizados a ponto de não terem iniciativas próprias de desenvolvimento e mudança, reduzidos a objetos de estudos e boas ações de outros. Era essa a dicotomia do noticiário sobre a periferia antes de o Mural chegar. Os muralistas estão preocupados em cobrir a realidade de suas regiões. Aonde outros jornalistas e veículos não chegam. Não sabem chegar. Não querem chegar.

No início, alguns não queriam escrever sobre o que não era bom ou não funcionava. Diziam não se sentir bem falando mal de onde moravam, que queriam mostrar o lado positivo. A discussão do grupo evoluiu. Se um muralista hoje descreve a maratona de sofrimento que é ir a uma consulta no posto de saúde (que muitas vezes nem fica em seu bairro, e é preciso antes enfrentar o desafio do transporte público até lá), isso não é falar mal. É denunciar a falta de planejamento, infraestrutura e investimento na oferta dos serviços públicos da cidade (pelos quais todos nós pagamos impostos, eles também).

O blog Mural ganhou o prêmio Top-Blog na categoria Cotidiano por dois anos seguidos, em 2011 e 2012. E muito mais vem por aí. Em janeiro, o coletivo ganhou um espaço quinzenal no Guia da Folha. Em fevereiro, um convite para escreverem para o Observatório da Imprensa. E um subgrupo de meninas está para lançar mais um site, o Nós, Mulheres da Periferia

Em tempos de revoluções no negócio e no formato do jornalismo, voltar à busca pela relevância perdida e pela relação direta com o leitor parece pavimentar o caminho do Mural para mais conquistas. Como diz o título de um dos poemas escrito pela mura- lista Jéssica Moreira, 22, correspondente de Perus, 'Eu (não) quero C, eu quero star."

Este artigo foi publicado originalmente pela Revista ESPM de Jornalismo, edição brasileira da Columbia Journalism Review. Foi reproduzido na IJNet com a permissão da revista e da autora.

Izabela Moi é uma jornalista que trabalha e mora em São Paulo há mais de 20 anos. Ela foi escolhida recentemente como bolsista do John S. Knight Journalism Fellowship 2014-15 na Universidade Stanford.

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