3 jornalistas documentam crimes de guerra em Mariupol

Nov 7, 2022 em Reportagem de crise
Mystyslav Chernov, Evegniy Maloletka and Vasilia Stepanenko

Quando se aproximava a invasão em larga escala da Rússia à Ucrânia, no fim de fevereiro, o jornalista da AP Mstyslav Chernov e os freelancers Evgeniy Maloletka e Vasilisa Stepanenko se prepararam para viajar para o que eles acreditavam que seria um alvo-chave das forças russas: a cidade portuária de Mariupol, no Mar Negro.  

Eles chegaram às 3 horas da manhã do dia 24 de fevereiro. A invasão começou uma hora depois. "Nós decidimos fazer uma matéria logo antes [da invasão] sobre como se preparar para a guerra. E então a guerra começou", diz Maloletka.

No início de março, os russos tinham cercado Mariupol. Chernov, Maloletka e Stepanenko trabalharam por 20 dias em meio ao cerco à estratégica cidade portuária, documentando alguns dos acontecimentos mais brutais dos estágios iniciais da invasão, à medida em que a Rússia bombardeava Mariupol implacável e indiscriminadamente.

Eles cobriram as dificuldades dos ucranianos para sobreviver com a cidade lentamente sendo estrangulada até a morte e o trabalho de salvamento de um importante médico voluntário mais tarde capturado pela Rússia. A famosa foto de Maloletka de uma grávida ferida sendo evacuada em uma maca chamou a atenção do mundo para o bombardeio de uma maternidade. Tanto a mãe quanto o bebê acabaram morrendo.  

Depois de três semanas de cobertura ininterrupta, e com o colapso das últimas rotas de escape para fora de Mariupol devido às condições deteriorantes, soldados ucranianos e uma família local levaram Chernov, Maloletka e Stepanenko — e suas filmagens — escondidos para fora da cidade. 

"Se eles pegarem você, vão te colocar na frente da câmera e te fazer dizer que tudo que foi filmado é mentira", relembra Chernov sobre o que um policial ucraniano disse a ele. "Todos os seus esforços e tudo que você fez em Mariupol vão ser em vão."

Os jornalistas

Chernov e Maloletka começaram suas carreiras no jornalismo em uma época de esperança no futuro da Ucrânia. A Revolução Ucraniana de 2013-2014 levou à deposição do presidente Viktor Yanukovych e a uma virada política para o país na direção da União Europeia. 

Poucos meses depois, no entanto, a Rússia invadiu e anexou ilegalmente a Crimeia, inflamando um conflito separatista nas províncias de Donetsk e Luhansk, no leste do país. Chernov e Maloletka logo se viram cobrindo esses conflitos. "Muitos fotojornalistas e fotógrafos documentaristas ucranianos automaticamente viraram fotógrafos de guerra", diz Chernov.  

Ele e Maloletka cobriram a guerra em Donetsk e Luhansk, além de outras crises globais, do conflito na região de Nagorno-Karabakh no Cáucaso Sul à Batalha de Mosul no Iraque e a pandemia de COVID-19 na Ucrânia. 

Enquanto isso, a jovem Stepanenko trabalhava como freelancer em sua cidade natal, Kharkiv, meses antes da invasão em larga escala da Rússia. Ela tinha acabado de se formar na faculdade de jornalismo. Desde pequena ela sabia que queria ser jornalista; aos cinco anos de idade, narrava notícias políticas para sua família no jantar.  

Assim como Stepanenko, Chernov é de Kharkiv, segunda maior cidade ucraniana, que fica não muito longe da fronteira com a Rússia. Maloletka é de Berdyansk, vizinha de Mariupol. Suas cidades de origem, todas no leste da Ucrânia, se tornariam alvos dos militares russos quando eles invadiram o país. 

 

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Os últimos jornalistas em Mariupol 

Com a fuga de moradores e outros repórteres de uma Mariupol sitiada, Chernov, Maloletka e Stepanenko ficaram para trás. Enfrentando conexões restritas de internet e telefone, redução de suprimento de comida, água potável e energia, e a constante ameaça de bombardeios e disparos de franco-atiradores, eles serviram como testemunhas do intenso sofrimento dos civis ucranianos — incluindo mortes de crianças resultantes das táticas de guerra indiscriminadas da Rússia.  

"O que aconteceu em Mariupol foi o pior que eu podia imaginar, que eu [já] vi na minha vida. Foi realmente importante mostrar ao mundo o que estava acontecendo", diz Stepanenko. "Foi realmente terrível, mas eu entendo que eu estava no lugar certo na hora certa."

Enquanto estavam em Mariupol, os três jornalistas se arriscaram nos bombardeios russos para fazer suas matérias por telefone via satélite nos poucos lugares onde conseguiam achar uma conexão. As matérias e imagens produzidas por eles apareceram nas primeiras páginas e em noticiários do mundo todo, servindo como uma réplica poderosa contra as negações do Kremlin das atrocidades feitas contra civis pelo exército russo. O trabalho deles chegou à ONU, onde a embaixadora dos Estados Unidos Linda Thomas-Greenfield, citou o jornalismo dos três em referência ao "terror que a Rússia está causando na Ucrânia e no povo ucraniano".

Este tipo de reportagem demanda que os jornalistas estejam em campo apesar dos riscos de segurança, diz Maloletka. "O que nós vemos e o que a propagando bruta diz [a nós] podem ser coisas opostas. E então você pode comparar", diz. "Todos esses relatos mostram a brutalidade [da Rússia]. Posso dizer que essa é a situação [do que] as tropas russas estão fazendo." 

Em reação às reportagens, a Rússia acusou os jornalistas de "informação terrorista". Soldados russos tentaram capturar Chernov, Maloletka e Stepanenko com a intenção de forçá-los a renunciar ao seu trabalho. Os jornalistas conseguiram fugir da cidade somente depois de serem encurralados em um hospital por atiradores e tanques.

"Eu sei que vimos os crimes com os nossos próprios olhos e que a propaganda [russa] disse algo diferente", diz Stepanenko sobre sua reportagem.

 

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Depois de Mariupol 

Um dia depois dos três jornalistas escaparem de Mariupol, em meados de março, a Rússia atacou um teatro que era usado como abrigo antibomba, matando mais de 600 civis, incluindo crianças. Uma pintura na calçada do teatro dizia "CRIANÇAS", fácil de ver do alto. 

O cerco brutal à cidade continuaria por mais dois meses — a queda de Mariupol foi em 20 de maio, depois de os últimos defensores ucranianos, que estavam em uma barricada na siderúrgica de Azovstal, se renderem.  

Os horrores de Mariupol podem ter se esmaecido da mente do público de fora da Ucrânia diante dos mais recentes relatos da linha de frente da guerra. Mas Chernov, Maloletka e Stepanenko continuam a trabalhar de Kiev, na cidade agora ocupada pela Rússia, bem como de outras partes da Ucrânia ocupadas ou recentemente liberadas.

"O público quase que se esqueceu de Mariupol. Nós não deixamos isso pra trás", diz Chernov, acrescentando que ele e seus colegas vencedores do prêmio ICFJ Knight de Jornalismo Internacional estão em contato com algumas de suas fontes a respeito da vida na cidade atualmente. "No momento, estamos trabalhando em outra matéria sobre Mariupol e como a cidade vai lidar com o inverno sem água, eletricidade e gás. Nós queremos [informar sobre] Mariupol o máximo possível." 

Com a invasão russa chegando ao nono mês, Chernov, Maloletka e Stepanenko ressaltaram a urgência de manter a atenção do mundo no país, e principalmente nas atrocidades cometidas pela Rússia contra civis, como em Mariupol. 

"É importante lembrar disso porque é o tipo de roteiro que vai se desenrolar em qualquer cidade que a Rússia venha a tomar o controle. [Mariupol] é um exemplo e um símbolo ao mesmo tempo", diz Chernov. "É importante destacar o problema da Ucrânia a todo momento, porque essa guerra está acontecendo com a nossa Ucrânia — com nossos amigos e parentes."


Participe do Tributo do ICFJ aos Jornalistas no dia 10 de novembro para homenagear Chernov, Maloletka e Stepanenko e outros repórteres corajosos do mundo todo. 

Todas as imagens foram cedidas por Mstyslav Chernov, Evgeniy Maloletka e Vasilisa Stepanenko.


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Jornalista freelancer

Devin Windelspecht

Devin Windelspecht é editor da Rede de Jornalistas Internacionais (IJNet). Antes de trabalhar na IJNet, ele era jornalista freelancer e cobria preservação e direitos humanos.