O jornalismo e ativismo do escritor Lima Barreto em documentário

4 août 2024 dans Diversos
Lima Barreto

Para quem acredita em signos, o taurino Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), um dos escritores mais renomados do século XX, teve na teimosia, ou melhor, na perseverança, seu maior êxito e sua fonte de discórdia. A visceralidade com que alimentava três de suas grandes paixões, o jornalismo, a literatura e a política, além de lidar com outros tormentos existenciais, o colocaram diversas vezes entre a luz e a escuridão, entre a consagração de seus escritos e a solidão dos que ousam criticar o status quo. Essa contradição ambulante do autor de o "Triste Fim de Policarpo Quaresma" guia o documentário dirigido por Rodrigo Grota: "Noite e Dia: vida e obra de Lima Barreto".

Com performances de atores sobre trechos de seus romances, além de material de arquivo e depoimento de pesquisadores, o longa destrincha um ser humano inquieto com o país e com a própria vida. Um intelectual negro, nascido no subúrbio e interessado pelas causas populares. Mas antes que lhe fosse permitido caminhar por entre os privilegiados, foi reprovado várias vezes na Escola Politécnica do Colégio Pedro II, na cidade do Rio de Janeiro. O racismo não facilitaria a vida de um engenheiro de cor.

Denuciante das injustiças      

Ao se graduar como engenheiro, Barreto frequentou cafés onde iam os jornalistas dos principais matutinos do país. Se encantou com os anarquistas e queria que os republicanos discutissem medidas em prol de uma sociedade menos desigual. Em 1902, ele passou a atuar na imprensa estudantil. Com o modesto ordenado que recebia como funcionário público na Secretaria da Guerra, passou a dedicar-se à literatura. Em 1904, começou a escrever a primeira versão do livro "Clara dos Anjos", que só viria a ser publicado em 1948. No ano seguinte, começa sua carreira como jornalista profissional no Correio da Manhã, onde cobriu a derrubada do Morro do Castelo.

Na revista Careta, de 28 de agosto de 1920, escreveu o artigo "Megalomania", no qual chamava atenção para o descaso com a precariedade das habitações da população mais pobre. E dessa maneira, usou a imprensa para uma escrita engajada e militante.

No início do século 20, Barreto se tornou um dos primeiros escritores brasileiros a abordar de maneira direta e crítica as questões sociais e raciais de sua época. Suas obras, como "Triste Fim de Policarpo Quaresma" e "Recordações do Escrivão Isaías Caminha", exploram temas como racismo, injustiça social, burocracia estatal e marginalização. Ele não apenas descrevia os problemas sociais, mas os denunciava de forma incisiva, mostrando contradições e injustiças.

Ele seria "cancelado"?

Sua inconformidade com absolutamente tudo e a ojeriza a  bajulações, o fez criar inimizades com algumas personalidades da época, incluindo o então presidente da República, Floriano Peixoto. Alfinetava ainda dois gênios do jornalismo literário daquele tempo. Machado de Assis e João do Rio eram atacados pelo estilo narrativo de romantizar os problemas do Rio de Janeiro. 

“Por ser contra tudo e contra todos, hoje em dia ele seria vítima da cultura do cancelamento”, diz Grota. “Em seu tempo, ele escreveu de forma muito negativa em relação a personalidades gays da época". O diretor do documentário acredita que se fosse hoje, certamente Barreto seria alvo de críticas dos setores mais atentos contra a homofobia. "Lima era um grande autor, e como todo grande pensador assumia riscos, seguindo muito a sua intuição. Mas também acabou por cometer excessos passionais que no fundo eram preconceitos que ele tinha".

Ainda assim Grota afirma que o escritor possuía qualidades que considera essenciais para uma imprensa livre e com senso crítico: perspectiva histórica e social, senso de humor e estilo de linguagem, além de uma visão humanista e engajada. “Lima travou batalhas a que poucos jornalistas aderiram naquele momento histórico: a luta contra o racismo estrutural, as críticas contra o feminicídio, as sátiras ao poder militar e político", ressalta o diretor. 

Em tempos atuais, que jornalista poderia ser comparado a Lima Barreto? “Acredito que a jornalista Flávia Oliveira, comentarista da Globo News, se aproxime da visão de Barreto, pelo engajamento político e social, e também pela sensibilidade ao tratar dos mais diversos assuntos no dia-a-dia", avalia Grota. 

Corajoso, passional e incompreendido

Entre 1920 e 1957 Lima Barreto foi esquecido pela História, sendo “redescoberto” pelo historiador e também jornalista Francisco de Assis Barbosa. Com vinte anos de diferença, Barbosa trabalhou, em 1944, no mesmo Correio da Manhã onde Barreto deslanchou-se como cronista. Tempos depois, escreveu o que é considerada a melhor biografia do escritor ("A Vida de Lima Barreto"), reconhecida pelo rigor da pesquisa.

Segundo Grota, Lima Barreto teria sido mais aceito e mais divulgado se não fosse um autor tão crítico. Ele ousou desmascarar, por exemplo, o jogo que é realizado dentro da imprensa que se mantém financeiramente a partir do apoio a alguns grupos políticos. “Lima era um homem muito corajoso, e também muito passional: falava o que sentia. Ele tinha também o dom de escrever como as pessoas falavam no subúrbio do Rio. Alguns críticos da época não entenderam isso: achavam que era um texto ruim ou mal escrito".


Foto: Reprodução da chamada do documentário


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