A pandemia impactou de forma contundente o Brasil, especialmente o estado do Amazonas, que em janeiro deste ano sofria com a falta de oxigênio em hospitais. A doença trouxe ainda consigo uma profusão de informações falsas, como um texto que circulou nesse período afirmando que o decreto de isolamento social criado pelo governador impediria a abertura de supermercados. O Governo do Estado, entretanto, nunca emitiu tal proibição.
Trabalhando para dar sentido a esse contexto caótico, a Abaré, uma iniciativa formada por jovens jornalistas, teve um ano intenso desde a sua criação em abril de 2020. O grupo tem como objetivo promover a educação midiática no Amazonas.
“Pensamos ‘o que está faltando?’ e ‘o que a gente quer fazer com paixão?’ e a resposta para isso foi tratar de temas educacionais e fazer jornalismo através da educação midiática”, diz Jullie Pereira, uma das cofundadoras.
Educação midiática no Brasil pandêmico
A meta do grupo é alcançar as populações periféricas, principalmente os jovens, por meio de trabalhos presenciais nas comunidades, além da realização de oficinas, cursos e debates online.
“A educação midiática é a chave para mudar o cenário de desinformação e os jovens periféricos são o principal público com quem pretendemos trabalhar”, explica Pereira. Segundo a jornalista, um grande obstáculo para a concretização da “alfabetização midiática” é que ela ainda não foi inserida totalmente nos currículos escolares.
Para Clara Becker, jornalista e cofundadora do Redes Cordiais, outra iniciativa de educação midiática, o assunto precisa ser encarado de forma séria pelos órgãos estatais e virar política pública. “Não vejo ainda esse tema na agenda do MEC e das secretarias de educação. Ele foi incluído na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), mas ainda falta preparo dos próprios professores para implementá-lo nas salas de aula.”
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Entretanto, devido à crise sanitária, o trabalho presencial, foco inicial da Abaré, teve que ser temporariamente adiado. “Tivemos que rever todo nosso planejamento e adaptá-lo para o digital”, lamenta a cofundadora.
Nesse novo cenário, surge o problema de acesso aos conteúdos, já que muitas vezes os jovens não dispõem de recursos para acessar a internet. “Atualmente, a nossa produção é mais acessível para quem tem acesso ao YouTube, às redes sociais e a ferramentas como o Google Meet”.
Soma-se ao contexto da pandemia dificuldades específicas da realidade brasileira. “O Brasil tem uma baixa qualidade de ensino público e é o segundo país em uso diário de redes sociais, segundo ranking da Global Web Index. A combinação desses dois fatores faz com que sejamos bastante vulneráveis à desinformação que circula na internet”, explica Becker.
Ações online e offline
Diante dessa conjuntura pandêmica, o coletivo promoveu cursos online, como a oficina “Como fiscalizar seu governante”, e criou o “Mostra pra gente”, um ranking de transparência dos municípios do estado elaborado a partir da análise dos Portais da Transparência de cada cidade.
“A transparência pública e o acesso à informação são direitos conquistados e é sempre importante discutir e encontrar formas de torná-lo mais pleno. Nesse sentido, é importante que a administração pública não se limite aos pontos exigidos pela lei e busque novos formatos e plataformas”, diz Gabriel Veras, jornalista responsável pelo levantamento e cofundador da Abaré.
Entre as ações da organização, também está o fact-checking. “Fizemos checagem de fatos do último debate entre candidatos à Prefeitura de Manaus em parceria com o jornal ‘A Crítica’ e criamos um grupo de WhatsApp onde publicamos nossas produções”, conta Pereira.
Apesar das dificuldades geradas pela crise sanitária, os jornalistas realizaram uma ação presencial colando cartazes e distribuindo panfletos informativos sobre fake news na feira modelo do Compensa, bairro de Manaus, durante o segundo turno das eleições de 2020.
Desafios e modelo de negócio
De acordo com Pereira, o maior obstáculo do grupo tem sido criar um negócio sem possuir os conhecimentos necessários. Por isso, ela recomenda aos jornalistas que desejam empreender que estudem temas ligados a administração, finanças e modelos de negócios. “A faculdade não prepara os jornalistas para a criação de empresas”, diz.
Outro desafio elencado por ela é entender as necessidades do público local: “Quando se começa algo que não existe na região, não se sabe como as pessoas vão reagir, portanto conhecer os seus gostos e o seu consumo de notícias é um desafio.”
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No começo, a Abaré cogitou cobrar pelas suas oficinas de acordo com o poder aquisitivo de cada público, mas, com a pandemia, os jornalistas perceberam que as pessoas não tinham condições de pagar por elas. Por enquanto, o grupo ainda não possui receita fixa e busca editais para obter verbas.
“Ainda não temos um CNPJ e seguimos um modelo de ONG. Estamos experimentando. Pensamos em realizar fact-checking, mas precisamos estabelecer um modelo de negócios para isso”, afirma Pereira.
Para o futuro, o grupo está desenvolvendo um podcast e pretende montar no final deste ano uma “vaquinha virtual” a partir da discussão de quem financia o jornalismo no estado. “Queremos fazer o leitor entender como a mídia do Amazonas se financia e a importância de se pagar pelo que se consome”, destaca a cofundadora da Abaré.
Para os que desejam adentrar no universo da educação midiática, Becker recomenda: “Sugiro que tentem pensar em projetos que possam ganhar escala, que tenham impacto, seja por meio de influenciadores digitais ou professores. A demanda por uma educação digital é tão ampla que o risco de qualquer iniciativa virar uma gota no oceano é enorme.”
Raul Galhardi é jornalista e mestre em Produção Jornalística e Mercado pela ESPM-SP. Portfólio e Medium.
Imagens cortesia da Abaré, por Nicole Baracho e Deborah Arruda