O uso da linguagem neutra tem o objetivo de evitar a exclusão de pessoas com base em sua identidade de gênero, sexualidade, ou outros aspectos de identidade. Geralmente, se trata de colocar o "e" no lugar das letras "o" e "a" no fim das palavras.
O assunto entrou em discussão na grande mídia após a notícia da aprovação do projeto de lei n° 5.123 do estado de Rondônia, proposto pelo deputado estadual Eyder Brasil do PL, que proibia o uso da linguagem neutra em todas as instituições de ensino do estado. O parlamentar afirmou em seu discurso que "a aprovação da lei evita qualquer interferência ou manifestação ideológica no uso da língua padrão”. O projeto de lei foi derrubado por unanimidade no dia 10 de fevereiro em julgamento no Superior Tribunal de Justiça onde o relator do caso, ministro Edson Fachin, declarou que a lei é inconstitucional e que “viola a competência legislativa da União”.
No entanto, outros 20 estados do país contam com leis semelhantes com a proposta em Rondônia. Em levantamento realizado pela Universidade Federal de São Carlos, de janeiro de 2020 até fevereiro de 2022, o Brasil contava com 45 projetos de lei em tramitação ou aprovados que propunham a proibição do uso da linguagem inclusiva nas escolas.
Ameaça ao português?
O escritor trans e estudante de letras Ariel F. Hitz utiliza a linguagem neutra em suas obras literárias e, além de abordar o tema com frequência em suas redes sociais, chegou a desenvolver posts sobre o uso da linguagem neutra. Para ele, há um movimento preciosista quanto a uma falsa imutabilidade da língua.
Hitz destaca o fato de que a língua é um instrumento político que deve ter como papel principal a comunicação da comunidade em que está presente. “Quando alguém se coloca contra a existência da linguagem neutra não faz isso pensando no suposto uso correto da língua, apenas usa desse argumento para justificar o próprio preconceito”, afirma o escritor.
Guilherme Novais, redator do portal Globo Esporte, diz que o uso da linguagem neutra em veículos jornalísticos acaba tendo a limitação de não querer perder a parte do público conservador. “Não importa se pode ser um gesto inclusivo e decolonial, se a direção de tal veículo acredita que a língua é mutável ou se é semanticamente correto. O que realmente importa é a manutenção da posição desta mídia e, consequentemente, do público que sustenta o lucro e a lógica capitalista da empresa”.
Novais lembra que há uma padronização do gênero masculino na linguagem dos textos jornalísticos. O jornalista diz acreditar no uso da linguagem neutra como um passo importante para a quebra desse padrão, mas que ainda existe um longo caminho a ser percorrido. “Eu vejo como uma realidade ainda distante de ser debatida com seriedade na grande mídia”, diz Novais.
Um exemplo entre os nativo digitais
A Periferia em Movimento é uma produtora independente de Jornalismo de Quebrada e foi fundada em 2009 por jovens jornalistas da periferia da Zona Sul da cidade de São Paulo. A mídia se posicionou e adotou publicamente a linguagem neutra em 2021. Mas a discussão é bem mais antiga. Em 2014, o grupo fez uma série que trouxe o protagonismo da narrativa e vivências de pessoas trans.
Em junho de 2021, a Periferia em Movimento publicou um editorial que marcou em definitivo a transição para a linguagem neutra. A partir disso, fizeram diferentes ações, como a formação de uma equipe específica para cuidar da linguagem neutra.
"Se adaptar a outras possibilidades de linguagens não é simples para ninguém, mas não podemos parar e desistir na primeira dificuldade, principalmente quando somos uma mídia comprometida em retratar quem está a frente da luta por direitos a partir de territórios periféricos", explica Aline Rodrigues, Gestora de Redes e Narrativas da Periferia em Movimento. "Por isso, nos comprometemos sempre a fazer as mudanças necessárias no esforço contínuo de não deixar ninguém para trás. A linguagem neutra não exclui, ela contempla as diferentes existências."
O jornalismo também deve ser para todes
Samira de Castro, presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), afirma que o tópico já começou a ser mais discutido entre jornalistas e sindicalistas. No entanto, Castro diz constatar um certo estranhamento quanto ao uso da linguagem inclusiva entre os próprios colegas. “Outro dia, fiz uma circular da FENAJ utilizando o "todes" nos cumprimentos à diretoria e a secretária logo me respondeu dizendo "olha, corrigi o todos que estava errado". Então, tive de explicar a ela que usaríamos todes no lugar de todas/todos”, explica Castro. A jornalista acredita que os próximos passos para os sindicatos envolvem debater mais a linguagem neutra e também oferecer capacitações para a categoria e dirigentes.
Novais diz que o assunto já é tema de discussão no meio acadêmico, mas que ainda não observa o mesmo no meio jornalístico. “Profissionalmente, em redações que trabalhei, ainda existem poucos debates sobre o uso da linguagem neutra em textos jornalísticos”.
É fato que o tema surgirá cada vez com mais frequência e, espera-se, que com mais força. O uso da linguagem neutra e inclusiva não é uma tentativa de enfraquecimento de uma língua e suas normas. Mas a resistência de alguns, acaba sendo uma ameaça para inclusão de vivências trans e não-bináries. Segundo Castro, a implementação do uso da linguagem deve se tornar cada vez mais cotidiana, afinal, o objetivo do jornalismo deve sempre ser incluir. “Toda evolução exige um começo. É claro que quem sempre foi privilegiado, inclusive na linguagem, vai reclamar”, conclui a jornalista.
Foto: Canva
Texto atualizado em 8 de maio de 2023, às 12:35 pm.